Os projectos utópicos — as suas motivações e as suas falhas no mundo real – têm extraordinário interesse pelo que nos dizem sobre as nossas sociedades. É inegável que o socialismo foi um dos mais influentes projectos utópicos do passado. Todos conhecemos as histórias e as falhas de regimes totalitários socialistas como a União Soviética, a China ou Cuba, cujos resultados históricos foram inegavelmente catastróficos.

Na verdade, no entanto, durante o século XX, houve um outro tipo de projecto, provavelmente até mais próximo de realizar a utopia socialista, que quero aqui analisar, pois creio ter várias indicações não só sobre a economia, mas também sobre a natureza das sociedades humanas contemporâneas. Falo dos kibbutz, em Israel. Na verdade, os kibbutzim israelitas representaram um projecto duplamente utópico, combinando a utopia socialista e a utopia nacional. Provavelmente, as duas utopias, embora ocasionalmente em tensão, contribuíram para se sustentar mutuamente.

O primeiro kibbutz foi fundado em 1910 por emigrantes da Europa de Leste, na sua maioria judeus Ashkenazi, na Palestina, então ainda no Império Otomano. No entanto, a grande maioria dos mais de 200 kibbutzim em Israel foram construídos nos anos 30 e 40, durante o mandato Britânico da Palestina e antes ainda da criação do Estado de Israel. Em grande medida, foram alimentados pela fuga de comunidades judaicas da Europa Central e de Leste, não apenas por razões económicas, mas principalmente para escapar à perseguição étnico-religiosa que naquela altura se intensificou. Os kibbutzim faziam parte de um projecto ideológico que teve uma enorme influência na construção do estado de Israel: o socialismo sionista. Infelizmente, grande parte da esquerda europeia tende a esquecer-se destas origens e motivações. O projecto era sionista por motivos práticos: a migração e a construção de um Estado de Israel era a única maneira das populações étnicas judaicas da Europa, que não haviam tido uma nação própria em solo europeu e que ali enfrentaram séculos de discriminação sistemática, sobreviverem. Com a crescente tragédia dos pogroms e mais tarde do Holocausto, muitos migrantes judeus acabaram por aderir à ideia. Se muitos judeus migraram para Israel durante a primeira metade do século XX com o objectivo de viver em paz e fugir à perseguição, um subgrupo tinha objectivos mais contundentes. Abandonando as suas profissões liberais e intelectuais nos centros urbanos europeus, pretendiam a edificação de um projecto utópico de dedicação ao trabalho manual, à vida comunitária e à partilha igual dos bens materiais.

Esse projecto consistia no socialismo voluntário. Ao contrário do que se passou nos regimes ditos comunistas, bem como noutras comunas religiosas, todos os participantes no kibbutz podiam entrar e sair de forma totalmente voluntária, quando quisessem. Mais, o projecto assentava numa perspectiva comunitarista da democracia: uma vez por semana, uma assembleia do kibbutz tomava as decisões, dando oportunidade a todos os membros de se expressarem. Quem escolhesse entrar no kibbutz, depois de aprovado pela comunidade, doava todos os seus bens e propriedade ao colectivo. A partir daí, trabalhava nos vários ramos de actividade do kibbutz – tradicionalmente agrícolas e alguma indústria – e recebia um salário em géneros. O dinheiro não tinha lugar nos lugares que não existem. Isto é, tudo aquilo que necessitava para viver: comida, roupa, tecto, actividades de lazer, etc. As refeições eram feitas colectivamente, as crianças iam à escola juntas e dormiam juntas em camaratas do kibbutz, separadas dos pais, uma das características mais polémicas e que foi rapidamente abandonada, passando as famílias a viver num lar próprio. Não se pense, contudo, que isto eram meia dúzia de loucos. No momento da fundação do estado de Israel, cerca de 5% da população vivia em kibbutzim e, no seu auge, cerca de 35% da população rural judaica israelita vivia em kibbutz. Actualmente, mais de 120 mil pessoas vivem ainda em kibbutz e, até há bem pouco tempo, cerca de 40% da produção agrícola israelita provinha destas comunidades, que também estão envolvidas em inúmeras indústrias e campos de actividade. Devido às doações dos seus membros, mas também de indivíduos solidários com o projecto, alguns kibbutz são riquíssimos, gerindo com racionalidade o seu portfolio. Curiosamente, os kibbutz mais ricos eram também os mais iguais – precisamente porque a riqueza lhes permitiu escolher a igualdade durante mais tempo.

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Porque falo aqui de tudo isto? Em 2018, o economista Ran Abramitzky, professor em Stanford e neto de um fundador de um kibutz, publicou “The Mystery of the Kibbutz: Egalitarian Principles in a Capitalist World”. O livro suscita uma série de reflexões importantes e mais latas sobre o poder dos incentivos na economia, mas também sobre a importância da ideologia, do contexto cultural e político, e da composição étnica e social nos resultados económicos das sociedades. É uma interessante reflexão sobre a importância de olharmos para a intersecção da economia e da cultura, e de como não devemos negligenciar os poderes de ambas. As “lições”, se assim as quisermos chamar, são várias e importantes para a formulação de políticas públicas, mas também para reflexões necessárias nas sociedades contemporâneas.

Abramitzky faz simultaneamente uma análise rigorosa dos dados e conta-nos histórias biográficas interessantíssimas. Como correu a experiência do kibutz do ponto de vista económico? De forma simplista, podemos dizer que durou mais do que a teoria económica e os cínicos fariam prever, mas durou menos e enfrentou mais obstáculos do que os idealistas comunitários desejavam.

Qualquer comunidade com as características do kibbutz, isto é, que deseja uma partilha total e igualitária dos bens materiais, enfrenta quatro grandes obstáculos, na sua maioria presentes no binómio em tensão igualdade versus incentivos. O kibbutz conseguiu ultrapassar até certo ponto alguns deles, mas não conseguiu lidar com outros. Em primeiro lugar, uma comunidade deste tipo, que deseje produzir e partilhar de forma igual aquilo que produz, mas que tem também as fronteiras “abertas” à saída, depara-se com o problema da “fuga de cérebros”. De modo simplificado, aqueles que conseguiriam um salário e um nível de vida superior na economia de mercado do resto de Israel, tinham grandes incentivos para o fazer. Os dados mostram que, ao longo das décadas, quem saiu era de facto mais qualificado, em média, do que quem ficou. No entanto, a fuga de cérebros verificada nos kibbutzim não foi assim tão diferente à verificada noutras localidades rurais, onde o fenómeno também aconteceu. Lembremo-nos ainda que a entrada no kibbutz era voluntária: quem entrou tinha fortes ideais socialistas e não-materiais que, de certa forma, reduzem a propensão para abandonar a comunidade por razões financeiras.

O segundo grande desafio que o kibbutz ou qualquer utopia socialista tem de ultrapassar é o chamado problema do chamado ‘parasitismo’ (free-riding). Apesar do trabalho ser obrigatório para todos aqueles que podiam trabalhar, seria possível que alguns, sabendo que todos irão receber o mesmo em termos materiais, se esforçassem menos do que os outros e, no limite, se aproveitassem do trabalho dos outros. Muitos testemunhos, mesmo de pessoas que adoravam viver no kibbutz e partilhavam os seus ideais, falaram deste problema: de alguns trabalharem visivelmente menos do que outros. Abramitzky tenta analisar este fenómeno de forma mais sistemática, mas os dados são escassos. Apesar do total de horas trabalhadas e da percentagem da população que trabalha serem mais elevadas nos kibbutzim do que no resto da sociedade, também é verdade que este trabalho parecia ser, em média, menos produtivo, em parte devido às actividades em que os kibbutz se escolheram especializar (como agricultura e indústrias mais facilmente monitorizáveis). Em contrapartida, o problema do free-riding também não era tão grave assim como se poderia pensar à partida. Porquê? Como Abramitzky e outros psicólogos sociais explicam, há um mecanismo milenar de controlo dos penduras: a coscuvilhice. E, de facto, a muito menor privacidade dos indivíduos no kibbutz ajudou a mitigar este problema. Queremos mesmo ser malvistos por um grupo de pessoas com quem estamos sempre, no trabalho e no lazer e com quem comemos todos os dias, a todas as refeições? Não é por acaso que os kibbutz, em média, sempre tiveram um tamanho relativamente pequeno (poucas centenas de pessoas), ao invés de se fazer um único grande kibbutz de 100 mil pessoas, ideia que foi considerada. O socialismo e a partilha igual parecem ser muito mais fáceis de manter – e porventura só possíveis de manter – em pequenas comunas, onde todos se conhecem.

O problema do parasitismo também foi resolvido pelo processo de selecção de quem podia entrar. Antes de entrar no kibbutz, cada membro tinha de ser aprovado pela comunidade, sendo privilegiados os indivíduos mais novos, que haviam já cumprido o serviço militar obrigatório, com o mínimo de qualificações e que demonstrassem ideais semelhantes. Isto prevenia que muitas pessoas entrassem por razões erradas, por exemplo, pessoas que não partilhavam os ideais do grupo, mas que se queriam aproveitar da rede de segurança garantida por diversas razões. Claro que isto levanta a questão mais filosófica: será que uma comunidade socialista de partilha igual que rejeita pessoas por estas não poderem contribuir por alguma razão, ainda se pode dizer socialista nos ideais? Aqueles que entraram no kibbutz ainda em tenra idade e, mais tarde, adoeceram, envelheceram ou tiveram alguma desdita, beneficiaram da rede de segurança do kibbutz. Por exemplo, a avó do autor ficou viúva muito cedo, com duas filhas pequenas, e, mais tarde, contraiu Alzheimer. A comunidade do kibbutz sempre a apoiou. Será que os ideais iniciais não seriam violados se o kibbutz rejeitasse uma mulher recém-viúva, sem qualificações e com duas filhas?

O terceiro e quarto problemas seriam aqueles que ditaram as dificuldades e falência de muitos kibbutz. Por um lado, e apesar de a escolaridade média dos seus habitantes ser superior à da sociedade israelita, a frequência universitária era, no início, desencorajada. Os jovens completavam o liceu e o serviço militar obrigatório e depois iriam trabalhar. Só alguns cursos muito específicos e úteis às actividades do kibbutz eram aprovados. O problema é que, a prazo, o sub-investimento em muitos tipos de capital humano ditou que as indústrias em que o kibbutz se especializou começaram a ficar para trás, especialmente quando comparadas com a produtividade da indústria tecnológica israelita e com a globalização das cadeias de produção. Algumas empresas inovadoras, como a Netafim (maior empresa tecnológica de sistemas de micro-irrigação agrícola do mundo) foram fundadas e funcionam em kibbutzim. No entanto, este tipo de empresas não se desenvolveu em número suficiente nos kibbutzim.

Este problema – a incapacidade de adaptação do mundo à sua volta – foi talvez o principal problema que, após uma crise financeira nos anos 80, levou muitos kibbutz ao fim. Muito sobreviveram. Mas quase todos, incluindo o kibbutz mais antigo, abdicaram do modelo inicial. Já não fazem um partilha igual em género da riqueza, mas atribuem, isso sim, um salário em dinheiro a cada trabalhador, com uma parte variável dependendo da sua produtividade. Os graus universitários são incentivados. A rede de segurança e o nível de tributação continuam a ser muito superiores a qualquer estado capitalista ocidental. No entanto, o modelo já não se pode dizer propriamente socialista. Foram os próprios que o determinaram face às mudanças do mundo e às suas próprias experiências.

Finalmente, quero aqui salientar duas lições importantes que Abramitzky menciona. Em primeiro lugar, a importância do apoio político dado aos kibbutzim. Os primeiros governos do Estado de Israel protegeram e incentivaram o projecto do kibbutz, incluindo o Primeiro-Ministro israelita, David Ben-Gurion. As condições de propriedade e financeiras oferecidas aos kibbutzim foram sempre muito favoráveis. Mesmo quando governos de direita começaram a dominar a política israelita, apesar da redução do apoio político ao projecto, os kibbutzim continuaram a beneficiar de subsídios à produção agrícola, embora de forma semelhante aos produtores agrícolas franceses ou norte-americanos. Tudo isto, no entanto, foi uma escolha política que encerra lições para além da experiência dos kibbutz. O papel das escolhas políticas sobre o que proteger e o que apoiar, através das instituições e enquadramento legal, é absolutamente determinante no sucesso da economia, para além da teoria económica e dos ideais dos participantes.

Por último, e talvez o ponto mais interessante de tudo isto: qual o papel da homogeneidade étnica e social no sucesso, pelo menos durante as primeiras décadas, do kibbutz? Todos os kibbutzniks partilhavam uma identidade, uma cultura e uma ideologia muito semelhantes. No entanto, o contrafactual é importante: se os grupos fossem mais heterogéneos, ter-se-ia tudo desmoronado rapidamente? Parece-me que sim. A partilha entre membros de grupos homogéneos é mais fácil. O entendimento e a democracia também.

No fundo, este é o grande desafio das democracias e dos nossos Estados-sociais contemporâneos. Foram desenhados e fundados num período de homogeneidade social, em que os Estados eram capazes de excluir quem não pertencia. No entanto, tendo nós chegado a um momento histórico em que, felizmente, consideramos que todos os seres humanos são livres e têm iguais direitos políticos e sociais, isso implica também aceitar uma maior diversidade. Não falo apenas diversidade étnica, falo em termos mais latos: diversidade social, de visões políticas, de culturas e de origens. Não me parece desejável voltar atrás. Mas como podemos manter a tais redes de segurança e democracias desenhadas para a homogeneidade? Espero que alguém tenha imaginação e coragem políticas suficientes de pensar nestas respostas.