A propósito do posicionamento, passado e futuro, do atual Presidente da República perante a legalização da eutanásia e do suicídio assistido, tem sido salientada a sua fé cristã católica, o contraste entre tal legalização e a doutrina da Igreja Católica que ele professa, mas também, de forma mais ou menos implícita, que não poderia ele guiar-se por essa sua convicção pessoal, de índole confessional, num Estado laico como o nosso e numa sociedade pluralista como a nossa.
Este raciocínio justifica um esclarecimento. Não são princípios confessionais, cristãos ou católicos, que estão em causa. Estão em causa princípios civilizacionais que fundam a ordem jurídica que nos rege, princípios partilhados por católicos, cristãos de outras denominações, crentes de outras religiões e pessoas de convicções não religiosas.
É certo que a doutrina da Igreja Católica é muito clara na rejeição da legalização da eutanásia e do suicídio assistido. Mas fá-lo com justificações que se baseiam na reta razão e no direito natural; assenta essa rejeição nos princípios da inviolabilidade da vida humana (que a Constituição portuguesa acolhe de forma lapidar no seu artigo 24.º) e na dignidade dessa vida em todas as suas fases (dignidade que não se perde, pois, com a doença ou a deficiência), princípios que não são, obviamente, exclusivos da doutrina católica. Isso é evidente em todos os documentos papais que abordam a questão, o mais autorizado e completo dos quais será a encíclica de São João Paulo II Evangelium vitae. É nessa ótica que se tem pronunciado, de forma recorrente, a Conferência Episcopal portuguesa. E assim também as associações profissionais católicas portuguesas, como na recente nota conjunta de juristas e médicos A morte provocada continua a não ser resposta.
Vem a propósito a forma como São Paulo VI, num discurso de 9 de dezembro de 1972, aos juristas católicos italianos, qualificou o valor da defesa da vida humana: um valor que está «nas raízes da civilização não apenas cristã, mas simplesmente e universalmente humana».
Um eloquente testemunho de que não estão em causa nesta questão valores exclusivos da doutrina católica, vemo-lo nas posições que em Portugal vêm sendo assumidas por representantes de várias religiões (numa iniciativa que tem algo de inédito entre nós e é, por isso, histórica). São conhecidas as declarações do Grupo de Trabalho Interreligioso – Religiões/Saúde, composto por representantes da Aliança Evangélica Portuguesa, da Comunidade Hindu, da Comunidade Islâmica de Lisboa, da Comunidade Israelita de Lisboa, da Igreja Católica, da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias (mórmons), da Igreja Ortodoxa da Sérvia, da União Budista Portuguesa e da União Portuguesa dos Adventistas do Sétimo Dia. Em maio de 2018, desse Grupo surgiu a declaração Cuidar até ao fim com compaixão. Recentemente, depois da aprovação parlamentar da última versão do projeto de legalização da eutanásia e do suicídio assistido, por tal Grupo foi reafirmada a oposição a tal legalização; na base da convicção de que «a vida humana é inviolável e indisponível» porque «é um dom de Deus», mas também «porque é humana e, por isso, é digna»; sendo que a resposta ao sofrimento dos doentes passa pelos cuidados paliativos, não pela morte provocada.
Noutros países também tem sido essa a posição de representantes de várias religiões. Muito recentemente, em França, onde se discute a eventual legalização da eutanásia e do suicídio assistido, no âmbito da, assim designada, Convenção Cidadã sobre o Fim da Vida, foi essa a posição assumida, por unanimidade, por representantes das maiores comunidades religiosas desse país: cristãs (católica, protestante e ortodoxa), muçulmana, judaica e budista (ver www.famillechrétienne, 19/12/2022). Todos eles salientaram como essa legalização quebra o interdito de matar que tem sido partilhado por muitas sociedades e em muitas épocas, interdito que é indispensável para uma convivência pacífica. E salientaram também que essa legalização contraria o princípio de que a dignidade da pessoa é a mesma em todas as fases da vida, não se perde com a doença e mantêm-se mesmo quando a pessoa experimenta uma sensação de perda desse dignidade. Também para esses representantes de várias comunidades religiosas, a resposta a essas situações de sofrimento passa pelos cuidados paliativos, não pela morte provocada.
Não se pense, porém, que estes valores da inviolabilidade da vida humana e da sua igual dignidade em todas as suas fases são exclusivo de várias religiões.
Desde logo, porque a oposição à legalização da eutanásia e do suicídio assistido tem sido a posição mais comum das ordens profissionais de médicos e de enfermeiros, oposição baseada em ancestrais e estruturantes normas deontológicas que não se confundem com alguma opção confessional. É essa a posição atual da Ordem dos Médicos portugueses e de todos os anteriores bastonários dessa Ordem, na linha da que continua a ser posição da Associação Médica Mundial. É essa também a posição da Ordem dos Enfermeiros portugueses.
A propósito desta questão, várias vezes tenho evocado uma afirmação de um conceituado intelectual italiano que com propriedade poderíamos qualificar como “socialista, republicano e laico”: Norberto Bobbio. Essa afirmação foi proferida a propósito da legalização do aborto, mas poderá também reportar-se à legalização da eutanásia e do suicídio assistido. É a seguinte: «Gostaria de perguntar porque é que será surpreendente que um laico considere válido em sentido absoluto, como um imperativo categórico, o “não matarás”. E, por outro lado, espanta-me que os laicos deixem aos crentes o privilégio e a honra de afirmar que não se deve matar».
“O privilégio e a honra “ de defender os valores da inviolabilidade da vida humana e da sua igual dignidade em todas as suas fases não são, pois, exclusivo de católicos, de cristãos ou de crentes de várias religiões. Estão em jogo princípios civilizacionais que estão na base da nossa ordem jurídica.
Por tudo isto, o atual Presidente da República tem toda a legitimidade para se guiar pelas suas convicções pessoais ao intervir no processo legislativo relativo à eutanásia e suicídio assistido, convicções que são conhecidas de quem o elegeu. Não tem, certamente, menos legitimidade do que os deputados que aprovaram essa legalização, muitos dos quais guiados por convicções pessoais desconhecidas de quem os elegeu. Não tem menos legitimidade para se guiar por tais convicções nesta matéria do que terá noutras de muito menor relevância sobre que muitas vezes toma posição.