Vivemos numa era de ressurgimento de intolerâncias, tribalismos e legitimações da violência exercida em nome de causas (apresentadas como) bondosas. São disso ilustrativos os dois episódios violentos dos últimos dias (a interrupção de um lançamento de livro e o ataque com tinta ao ministro Duarte Cordeiro), que reacenderam as trincheiras do combate político. De onde estou, não tenho dúvidas: considero todas estas manifestações violentas deslocadas, contraproducentes e inaceitáveis. Acho surpreendente como é que ainda se cai no erro de, na comunicação social, tratar uns como vilões (a direita) e outros como anjinhos (a esquerda). E, sobretudo, preocupa-me o risco sério de fragmentação social quando se relativiza a violência em funções dos grupos (ideológicos, geracionais, étnicos, sexuais) a que se pertence: quem celebra a violência pelas causas que apoia está a legitimar igualmente a violência pelas causas que repudia (mas que outros apoiarão). Infelizmente, é esse caminho que estamos a percorrer.
Isso tornou-se claro com a defesa que muitos fizeram dos activistas que atacaram o ministro Duarte Cordeiro. Recorro ao artigo de Carmo Afonso, ontem no Público, não para individualizar a discussão, mas porque me parece ser aquele que melhor elabora o raciocínio que tantos partilham — e que eu critico. Diz Carmo Afonso: “Ter razão legitima ações que, à partida, seriam ilícitas ou pelo menos incorretas. A própria lei penal consagra este princípio. E cada um de nós faz o mesmo no seu código pessoal de conduta. Não podemos, nem devemos, dissociar a bondade de um protesto da bondade da causa pela qual se protesta.”
Não nego que exista algo de verdadeiro nesta tomada de posição de Carmo Afonso. Fazer o que é justo pode significar agir de forma ilícita face às regras ou às leis vigentes. A história está repleta de exemplos de homens e mulheres que desafiaram o poder político ao desobedecer ou resistir contra a tirania, o ódio ou a segregação — fazendo-o com razão e forçosamente de forma ilícita. Carmo Afonso insiste nesse ponto: “As sufragistas foram violentas e o povo francês foi violento quando aboliu a monarquia absolutista. Serão precisos mais exemplos? A História avança assim. Hoje comemoramos essa violência, sabemos que serviu para erradicar uma violência maior e, sobretudo, sabemos que era justa e que lhe devemos muito”. Eu acrescentaria até que nem precisamos de consultar os livros de história: no Irão, vemos actualmente mulheres a resistir corajosamente à repressão do regime — têm razão, mesmo que sejam perseguidas como criminosas.
O problema do argumento enunciada por Carmo Afonso começa no baralhar dos contextos: subsiste uma diferença inultrapassável entre resistir a leis persecutórias de regimes autoritários (que sufocam liberdades e afastam cidadãos da decisão política) e atacar um ministro de uma democracia liberal, eleito pela maioria dos votos, num regime onde existem canais próprios para dar voz aos cidadãos (e, portanto, dispensar o recurso à violência). A legitimação da violência não tem espaço numa democracia liberal, onde as instituições existem precisamente para criar canais de comunicação, de diálogo e de construção conjunta de soluções. Ou seja, nada do que é verdadeiro no argumento de Carmo Afonso se aplica ao episódio dos activistas que agrediram o ministro Duarte Cordeiro. Por mais que alguns sonhem com jacobinismos, não estamos na França de Luís XVI.
O maior problema do argumento de Carmo Afonso surge logo de seguida (e consta acima na primeira citação): a associação da legitimidade da violência à convicção sobre se se tem razão ou não. É um critério que equivale à ausência de critério: quem exerce violência política está sempre convencido da bondade das suas razões. À falta de um juiz de moral política, isto torna-se válido para os activistas que agrediram o ministro, como o é para o grupo que interrompeu o lançamento de um livro com o qual discordava. Tal como o é, por exemplo, para os manifestantes que nos EUA invadiram o Capitólio, em Janeiro de 2021 — todos acreditavam que, com aquele acto violento, estariam a defender a democracia americana. No limite, até os apoiantes dos regimes mais sanguinários enquadram a sua violência política num entendimento perverso sobre o que melhor serve o Bem Comum. Numa democracia, onde reina o confronto de ideias, “ter razão” não é um critério que queiramos aplicar ao exercício da violência.
É claro que quem argumenta como Carmo Afonso não pretende legitimar toda a violência — apenas aquela que serve as razões políticas com que concorda e considera bondosas. O ponto é que, ao introduzir o critério «ter razão legitima o exercício de violência», está-se a abrir dois precedentes extremamente perigosos: a pretender arbitrar o que é ter ou não razão (passando por cima dos instrumentos democráticos) e a autorizar que qualquer acção violenta seja legitimada pela força das convicções dos seus autores. Por mais que seja apresentado doutra forma, o raciocínio de Carmo Afonso é intrinsecamente anti-democrático.
Há meros 10 anos, creio que seria evidente o quanto estas formas violentas de manifestação representam uma ameaça à coesão social nas sociedades ocidentais. Hoje, não o é de todo. As democracias caíram na ratoeira de elevar as diferenças (geracionais, étnicas, sexuais, identitárias, ideológicas) não em nome da saudável união na diversidade, mas em nome de uma fragmentação tribal de grupos que lutam entre si para exercer domínio sobre os outros. A defesa da legitimidade da violência é apenas um passo natural nesta caminhada de erosão dos regimes democráticos, onde o pluralismo vai sendo substituído pela intimidação e onde as minorias ambicionam impor a sua “razão” pela força. Diz que é tudo em defesa bem-intencionada do futuro — e há alguém que seja contra o futuro? Que haja tantos a acreditar na armadilha mostra bem o quão em risco esse futuro está.