Vivemos numa época de múltiplos crepúsculos, intensamente realçados e reforçados neste extenuante período pandémico. Sentimos que os modelos sociais, culturais e éticos, proporcionados por Estado, Escola, Família, Igreja perderam eficácia, provocando uma fragmentação crescente da experiência identitária e estreitando e esbatendo demarcações entre o permitido e o interdito. Confrontamo-nos, hoje, com uma “desautorização” efetiva das instâncias justificadoras do bem e do mal.  Verdade e dissimulação, ciência e ignorância, justiça e injustiça, honestidade e corrupção parecem convergir até à coincidência. Com este enfraquecimento, aumenta, até ao insuportável, a vulnerabilidade tanto psicológica como social dos indivíduos, terreno fértil para a exploração deliberada das incertezas bem como promoção e instrumentalização da ignorância.

“Agnotologia” (transliteração do grego clássico), é o termo que designa a utilização estratégica da ignorância como forma de adquirir vantagens específicas (económicas, políticas, culturais). Foi cunhado pelo historiador Robert Proctor, em 1992; é prologando e generalizado pela expressão “pós-verdade” (esta, canonizada em 2016). A regra de ouro é simples: a ausência de prova cabal legitima a afirmação contrária sem prova. A plausibilidade é substituída pelo dogma. As alterações climáticas e a pandemia de Covid-19 são disso bem exemplo. Explorando graus de incerteza, a estratégia consiste em gerar opacidade e prolongar toda a pluralidade em divergências insanáveis.

Ora, hoje vivemos numa espiral de incertezas. Época de medo, negatividade e más notícias. Tudo parece incerto e derradeiro. O desamparo perante o futuro que ameaça dispensar-nos não deixa de crescer. Perante o cenário, não é extremamente difícil pressentir o valor inestimável da ignorância. Diluindo-se o poder pessoal de convicção, resta um estado de anomia e de individualismo categorial em que o interesse particular e o bem privativo dos indivíduos e dos grupos se tornam a última referência legitimante. Os poderes de facto emergem, então, como regulação efetiva da ordem de coexistência e princípio de justificação.

A questão de fundo é profunda, não superficial. Respeita à perda de fundamentos simbólicos e coletivos da vida coletiva. Transferiu-se das ciências naturais para a ciências humanas, perpassando presentemente toda a sociedade. Há obras que são como que premonitórias. Refiro-me a uma célebre conferência, intitulada “A crise da humanidade europeia e a filosofia”, proferida em 1935 por Edmund Husserl, filósofo judeu alemão vítima dos nazis. Nela, o filósofo denuncia a crise civilizacional interpretada como “crise das ciências europeias” ou “crise da humanidade europeia” (expressões que usa como equivalentes).  Trata-se de uma crise que diz respeito tanto à compreensão teórica do mundo, como à orientação prática na vida. Está em causa a formação do próprio pensamento. É certo que Husserl escreve debaixo da ascensão do nazismo. Mas, talvez até por isso, a lição perdure: as simplificações excessivas motivam posições extremistas. A alienação no “objetivismo” e no “naturalismo”, o vazio gerado por uma razão meramente estratégica levou o ser humano a pedir normas para a vida a doutrinas desvalorizadoras da razão. É nessa “falha”, nesse empobrecimento do espírito, que têm florescido as doutrinas irracionalistas, sentimentos localistas e naturalizados, nocivos ao afrontamento e consentimento recíprocos das liberdades (é, concretamente, o caso do racismo e das derivas a ele associadas).

Na perspetiva do grande filósofo, fundador da fenomenologia, a degenerescência civilizacional seria irreversível, a não ser que fossemos capazes de estar à altura da nossa herança e reivindicar a fidelidade à matriz helénica. Tal como os indivíduos, as civilizações têm o seu passado. O passado é a parte inviolável e consagrada da nossa vida; não vivemos senão sendo constantemente possessores de passado. É nele que encontramos fundo e sustento. Ora, o maior legado deixado à nossa civilização é, sem dúvida, o valor da busca da verdade, encargo da Filosofia e fruto do seu espírito e do nosso trabalho. A sua exigência intrínseca é, justamente, a contenção dos irracionalismos, distinguir para unir e aprender a reconhecer o comum no diferenciado.

Talvez nos tenhamos deixado dominar demasiadamente pela imposição de uma consciência de “posteridade” (fim da história, morte de Deus, fim do humanismo, pós-verdade…). O cansaço gera desalento, desespero, incredulidade. Husserl desafia ao heroísmo da razão; saibamos reerguer-nos, porque a razão, sendo força constrangente, é igualmente, e por definição, crítica e autocrítica. Voltar a pensar pode não ser uma questão de atualidade, mas é sem dúvida um imperativo da contemporaneidade.

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