O precedente foi aberto, a máscara caiu e a cavalgada já não vai parar. Putin foi claro nas palavras, finalmente vociferou tudo aquilo que realmente pensa dos seus países vizinhos, como um suspeito que subitamente cede num interrogatório em situação de aperto psicológico e confessa os hediondos crimes, Putin confessou as suas hediondas visões sobre o que acha da Ucrânia e dos países da antiga esfera soviética, e reforçou sem receio nem vergonha que a Ucrânia é parte da Rússia e não merece existir como Estado soberano e independente.
Isto, senhoras e senhores, é Putin. É o que Putin realmente é, é o que Putin sempre foi, sem filtros, sem máscaras, sem bluff. Observamos nos dias de hoje a mais perfeita simbiose entre um homem e o seu projecto, um projecto traçado para reerguer um império desfeito em 1991, o projecto imperial russo, iniciado pelo Czarado no século XVI e extinto na morte da URSS. É este o desejo mais ardente de Putin. Sempre foi.
Em 1923 Richard Coudenhove-Kalergi escrevia o brilhante livro Pan-Europa, onde refere que é quando os europeus se começam a matar uns aos outros que a Europa começa a entregar o seu poder ao resto do mundo. Coudenhove-Kalergi prevê praticamente tudo o que surgiu depois de 1923, previu a 2ª Guerra Mundial, previu o aparecimento das armas nucleares, previu a ascensão e afirmação dos Estados Unidos na ordem mundial, previu o fim da hegemonia mundial europeia, previu a ascensão do Japão e previu a, para si, inevitável criação da União Europeia, porque a Europa perdia poder década após década e, porque este defendia que esta não podia perder poder face a um perigo eminente que Kalergi também previu, o aparecimento de um “Napoleão russo”. Uma impressionante análise de futuro condensada num livro tão sucinto.
A verdade é que o autor não errou em nada disto, muito menos, no “Napoleão russo”, primeiro com Estaline, agora com Putin. Este sabia que se estavam a criar as condições certas para que a Rússia se afirmasse como uma grande potência global e que, mais tarde ou mais cedo, apareceria um indivíduo que materializasse essas condições numa poderosa expansão imperial. A expressão “Napoleão russo” não se referia, portanto, a um indivíduo em concreto, mas a uma circunstância que levaria ao aparecimento desse indivíduo, tal como aconteceu com Napoleão – uma grande quantidade de poder concentrada no mesmo lugar, não será eternamente órfã, mais tarde ou mais cedo alguém pegará nesse poder e exercê-lo-á. Aconteceu no domínio de Estaline, quando este expandiu os tentáculos de Moscovo até à Alemanha de leste e está a acontecer agora, quando Putin começa a conseguir reerguer o poderio russo, depois de penosas décadas de recuperação económica após a queda e ruína da URSS, e alarga os tentáculos da esfera russa novamente.
A Bielorrússia é sua, um Estado fantoche liderado por Lukashenko, um autocrata que sequestra aviões comerciais para prender dissidentes. A Ucrânia esteve prestes a ser sua, pela mão de Yanukóvych, até que o povo se revoltou contra este segundo fantoche e iniciou uma deriva democrática no país, algo que Putin sentiu como uma humilhação, ripostando com a tomada da Crimeia e com o inflamar dos separatismos em Donbass. Hoje, à hora a que escrevo, Putin irrompe pela Ucrânia adentro para recuperar o que perdeu em 2014, o domínio, e independentemente de que tipo de domínio irá, desta vez, impor aos ucranianos, seja ele a criação de um Estado fantoche, seja ele uma anexação total, Putin manda uma mensagem clara: todos os ex-países da esfera do império russo que não façam parte da NATO deverão ser manietados pelos tentáculos de Moscovo. A máscara caiu e já não há nada que faça parar a sua cruzada pessoal. Quando a situação da Ucrânia estiver minimamente resolvida, o próximo alvo na mira só poderá ser a Moldávia, onde poderá usar a região separatista da Transnístria para aplicar o mesmo modus operandi que usou na região de Donbass, e entrar Moldávia adentro, o último país da Europa de leste fora das muralhas da NATO.
Como o próprio Putin garantiu no seu discurso de reconhecimento da independência das regiões separatistas do Donbass, um novo status quo veio para ficar na política de defesa europeia, onde a Rússia assume uma nova postura de defesa agressiva dos seus interesses nacionais. Acabou a dissimulação, acabou a artificialidade, acabou o bailado, o lobo despiu a pele de cordeiro. A partir de agora viveremos na austeridade do pragmatismo geopolítico, do realismo político e da realpolitik.
Putin só conhece a linguagem da força bruta, e é essa que vamos devolver. Porque como há mais de 2000 anos escreveu Tucídides na História da Guerra de Peloponeso, “quem tem poder, exerce-o como tiver de ser, quem não tem, aceita o que tiver de ser”, está na hora de a NATO mostrar o seu. O jogo de xadrez voltou.