1 É raro participar em abaixo-assinados, poucas vezes me aconteceu. Desta vez não. Juntei — com gosto e convicção — o meu nome a outros nomes, há meses que trazia na cabeça aquele gesto inquisitorial vindo de um sector vital do Estado como é a Educação: recorrendo a imerecido chumbo enxotaram-se dois (óptimos) alunos dos respectivos anos lectivos, fazendo-os recuar de ano por os pais se recusarem a que frequentassem uma disciplina —Cidadania — na escola pública que frequentam.

Como em todos os abaixo-assinados deste mundo que já conheceu dias mais limpos, e de um país que já teve maior decência, não julguei prioritário que a minha assinatura acolhesse cada alínea do articulado. Muito mais que ser especiosa quanto ao texto, moveu-me o sacrossanto princípio de um pai ou de uma mãe poderem dispôr do seu insusbtituível critério na escolha da educação de um filho — e nem preciso de recorrer à Constituição; e moveu-me obviamente a arbitrariedade da “punição” aos alunos e a espantosa naturalidade com que castigo tão inédito ocorreu aos responsáveis educativos.

Uma estreia “assoluta”, como na ópera, mas não estamos na ópera. Estamos a lidar com gente perigosa que não hesita no uso dos meios. Horas depois de conhecido o abaixo-assinado recorreu-se ao tique habitual: adulterou-se ou subverteu-se, atribuindo aos signatários intenções que não tinham, ideias que não eram as suas, propósitos que nunca defenderam. Como quem arreda uma pedra do caminho, desviou-se a verdade para a manipulação e o fundo do problema — e a sua argumentação — foram expeditamente trocados por gratuitas acusações e intencionais confusões.

Mas o que aqui interessa é que se está perante um ousadíssimo upgrading na colonização da opinião pública e publicada, das formas mentis, do espaço mediático, do ar do tempo. Tão ousado que me interrogo: quem tanto nos detesta dar-se-á porém conta da cada vez maior ausência de racionalidade política naquilo de que nos acusa? E da pouca ou nenhuma relação com a realidade como ela é, naquilo que diariamente os colonizadores vociferam contra os colonizados? Não sendo a realidade algo de facultativo, talvez um dia alguém dê por isso.

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2 Declaração impopular: não gostaria que os meus netos — agora já todos a viver em Portugal — frequentassem a tão acarinhada disciplina da “Cidadania”. Não pelo desconforme tratamento das questões de género mas pela pateteira geral. A questão do género é apenas uma parte de um desconjuntado universo de temas pseudo-científicos, espalhados por uma desgraçada escolha de conteúdos. E como teria sido inteligentemente desafiador eleger outros, tornando assimilável uma disciplina que agora é só risível. É preciso dizer isto setenta vezes sete vezes: o que incomoda, embaraça e constrange é a vacuidade da própria disciplina. Ensiná-la com este zelo faz mal à saúde do país.

3 O actual estado de coisas no PS — o seu radicalismo, um visceral abuso de poder, a arrogância e a impunidade com que se habituou a agir, o seu critério imperial — não começou hoje, não é só daqui, não é novo, nem existe só uma causa. Mas uma há, fortíssima e que de tão eloquente, radiografa bem a nova paisagem política nacional: o fim da fulcral diferenciação entre o PS que sempre conhecemos — o PS como Mário Soares o fez e o quis — e as esquerdas à sua esquerda. Arrasaram-se as fronteiras — convictas, sólidas, estáveis —, um novo PS foi desmembrando o antigo, o partido metamorfoseou-se. Vitoriosamente, de resto: o novo socialismo vê-se e revê-se nos universos à sua esquerda, deu-se um reencontro de famílias, primos e irmãos juntaram-se uns aos outros. Passou a haver cumplicidade, objectivos comuns, entendimento, alegrias partilhadas.

A geringonça não saiu aliás assim tão cara: sem remorso, a esquerda do Bloco engoliu o euro, as contas ou a NATO para ganhar com gáudio o resto: os costumes, as questões fracturantes, a relativização de tudo, toda essa actual parafernália de temas, exigências e reivindicações com que activamente se entretêm a dissolver a civilização ocidental. O fim das fronteiras que durante décadas separaram estes dois mundos — que entre si nunca porém dispensaram o combate político, o aceso confronto partidário ou a tensão da luta — foi também o fim de um certo entendimento que existia tacitamente na política portuguesa. E que naturalmente se reflectia na sociedade e na relação entre os portugueses.

Encostado à esquerda da sua esquerda — ou já mesmo casado com ela — o PS mudou de pele. Julgo que terá sido de vez, seguindo aliás os seus pares extra-muros. Não se vislumbrando que quem mande ou decida no Largo do Rato, apesar de se definir como “social democrata”, se aflija com tamanha metamorfose e os seus nefastos efeitos. E os outros socialistas aparentemente também não. Uns foram colonizados, outros deixaram-se capturar. E quem resiste é triturado como ainda agora sucedeu — furiosamente, raivosamente, odiosamente — com Sérgio Sousa Pinto por ter exprimido uma opinião dissonante da “casa”, ao partilhar com gente séria a sua indignação face ao ocorrido com os alunos punidos pela não comparência à disciplina de Cidadania.

E ora aí está: a alta voltagem do ódio no ataque a Sousa Pinto seria difícil de atingir há dez, vinte anos atrás. Não me lembro que se recorresse diariamente ao insulto soez, que fosse costume praticar a difamação como norma, utilizando mentira com o automatismo de quem abre ou fecha uma torneira. (Lembre-se a propósito que raros são os que do PSD para a sua direita têm direito de cidade: é-lhes automaticamente retirado de cada vez que abrem a boca e destoam. Sucede o mesmo nas moradas da esquerda europeia? Acontece também com os democratas norte-americanos? Sim, mas é fraco o consolo.)

A verdade é que passámos a testemunhar atitudes e factos tão acintosos que todas as dúvidas são permitidas sobre a moral, a decência, a integridade, a cidadania — a verdadeira — de quem usa tanta voltagem na apropriação do poder.

4 E depois há a outra metade do país, a que não consta. Uns por desistência, outros por comodismo, outros pelo silêncio, outros por medo, não constam. Deixaram-se desactivar. São por isso hoje largas e amplas as margens do consentimento face à colonização em curso. Devíamos logo ter desconfiado quando os vimos – aos do PSD e do CDS – ter fastio ou mesmo vergonha em assumir a herança da sua própria governação, chefiada por Passos Coelho, entre 2011 e 2015. Fazendo dela um pecado em vez de um trunfo político — Portugal começou a crescer em 2013, não houve segundo resgaste, o país saiu de todas as linhas vermelhas que herdara, Passos ganhou de novo as eleições. E, quem havia de dizer, a geringonça levou até de brinde uma confortabilíssima almofada financeira, que de muito lhe serviu.

O erro cometido ontem pela não reivindicação desta herança explica aliás — bem melhor do que se pensa — a despida, desolada paisagem (ou deveria dizer a humilhante paisagem?) onde vegeta agora a tal metade. Para ficarmos hoje por aqui em matéria de erros e consentimentos.

5 Pergunta ociosa: ninguém quer acabar com isto?