Já tudo certamente terá sido dito sobre a saída do Reino Unido da União Europeia. Não tenho qualquer comentário inovador a acrescentar sobre o tema. Posso apenas pedir ao eventual leitor destas crónicas a tolerância de aceitar (mais) um testemunho pessoal — de alguém que, em Portugal e até 1990, foi um europeísta incondicional, e que, em Oxford a partir daquela data, se transformou gradualmente num ‘europeísta céptico’, ainda que não um ‘euro-céptico’. Por outras palavras: lamento profundamente a saída do Reino Unido da União Europeia, mas receio ter de dizer que também a compreendo profundamente.

Tive vários ‘choques culturais’ na minha estadia no Reino Unido, entre 1990 e 1994, para onde fui fazer o doutoramento em Oxford por ‘ordem’ de Karl Popper — que me ‘mandou’ estudar no Reino Unido (ou, em alternativa, na América) se eu quisesse tentar compreender a ‘tradição da liberdade dos povos de língua inglesa’ (uma consagrada expressão de Winston Churchill). Obedeci às ‘ordens’ de Popper — ainda que eu não goste de obedecer a ordens, e ainda que na altura fosse consultor do Presidente Mário Soares (que gentilmente também subscreveu as ‘ordens’ de Popper). E tive o privilégio se ser admitido em Oxford como estudante de doutoramento de Ralf Dahrendorf (um germano-britânico que tinha sido aluno de Popper na LSE, antes de vir a ser director da LSE, e que era desde 1987 director do St. Antony’s College em Oxford).

Foram ‘os anos mais felizes da minha vida’, como se costuma dizer, com inteiro rigor, acerca dos anos passados em Oxford. E, tal como Popper previra, tive inúmeros ‘choques culturais’ — de que procurei dar conta nas minhas crónicas semanais, na altura no jornal Público (reunidas em livro em Liberdade e Responsabilidade Pessoal, 2008, com muito amável prefácio de José Manuel Durão Barroso). O primeiro e mais chocante ‘choque cultural’ foi sem dúvida sobre os diferentes entendimentos do projecto europeu.

Fui assistir a um debate sobre o projecto europeu no European Studies Centre do meu Colégio (St. Antony’s) — terá sido no outono de 1990, pouco depois da deposição de Margaret Thatcher como primeira-ministra (pelos deputados do seu próprio partido e, em grande parte, por causa do euro-cepticismo dela). Preparava-me para uma celebração da derrota do ‘nacionalismo populista’ de Thatcher (era mais ou menos assim que eu a via naquela altura). E defrontei-me com uma vigorosa intervenção de Dahendorf contra ‘o entendimento estatista, federalista e cartesiano’ de um projecto europeu supra-nacional, desenhado centralmente ao arrepio das democracias parlamentares nacionais. Fiquei simplesmente estupefacto.

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Foi o meu primeiro, e talvez o mais profundo, dos muitos ‘choques culturais’ que tive o prazer de receber no Reino Unido — e que Popper tinha certeiramente previsto. Dahrendorf não era um ‘little Englander’. Era um alemão anti-nazi, preso aos 15 anos pelo regime nazi, (filho de um líder social-democrata alemão, Gustav Dahrendorf, anti-nazi e e anti-comunista, ele próprio preso sucessivamente pelos nazis e depois pelos comunistas); o jovem Ralf Dahrendorf fora depois membro destacado do partido liberal alemão, depois membro de um governo de coligação entre sociais-democratas e liberais, depois ainda membro da Comissão Europeia pela Alemanha (quando negociara entusiasticamente a adesão do Reino Unido, mas da qual se demitiu a seguir por alegada falta de ‘accountability’, tendo ficado célebre a sua ‘boutade’ de que a Comunidade Europeia não seria aceite como membro da Comunidade Europeia por não preencher os requisitos democráticos).

Este ‘choque cultural’ conduziu-me a uma longa e vasta exploração intelectual, que aqui não posso resumir — e sobre a qual escrevi em livro de 2014, Portugal, a Europa e o Atlântico, com muito amável prefácio de Manuel Braga da Cruz. Permito-me apenas recordar (como já aqui recordei em Abril do ano passado) que interroguei naquela altura e com bastante insistência Ralf Dahrendorf, Karl Popper e Isaiah Berlin sobre a questão europeia. Todos foram surpreendentemente cépticos — e todos eram britânicos não nativos. Sir Isaiah (nascido na Letónia) disse-me que o projecto europeu estava muito bem, se fosse ‘para abrir portas, em vez de as fechar’, recusando quase colericamente a alegação de que o Reino Unido seria ‘nacionalista’; recordou em seguida uma interminável lista de exilados do continente, da esquerda e da direita, que tinham sido albergados nas ilhas britânicas (entre os quais, lembrou Sir Isaiah, se encontrara Karl Marx, que escrevera O Capital tranquilamente na British Library). Sir Karl (nascido na Áustria) simplesmente não quis alongar-se sobre a  questão europeia e insistiu que devíamos falar sobre a ‘special relationship’ entre o Reino Unido e a América — que nos tinha salvo a todos da pestilência nazi e comunista. E Lord Dahrendorf (nascido na Alemanha) explicou-me pacientemente a sua posição de ‘europeísta céptico’ por contraste com ‘euro-céptico’ e por contraste com ‘euro-entusiasta’.

Escrevi abundantemente sobre estes temas e não vou agora maçar o (eventual) leitor com longas teses entediantes. Talvez deva referir, no entanto, pelo menos três dos muitos pontos comuns na argumentação dos meus professores. Em primeiro lugar, todos sublinharam que a sede da democracia reside em Parlamentos nacionais e que a ideia de criar uma ‘democracia supra-nacional’ era um plano utópico inspirado na tradição continental de ‘abstracções sem fundamento na experiência ou na tradição’. Em segundo lugar, todos defenderam o multilateralismo e a crucial importância das alianças entre as democracias parlamentares nacionais — de que o exemplo mais importante, segundo eles, era a NATO. Em terceiro lugar, todos recordaram que as ilhas britânicas tinham defendido o seu Parlamento nacional contra diversos impérios continentais não-parlamentares: contra a Invencível Armada espanhola, contra Napoleão, contra o Kaiser, contra Hitler e depois contra Estaline.

Queria isto dizer que Popper, Berlin e Dahrendorf eram contra a União Europeia? De modo nenhum. Todos me repetiram várias vezes que Winston Churchill tinha sido um dos grande defensores e promotores do projecto europeu no pós-guerra — ainda que Churchill tivesse sempre visto o Reino Unido como o amigo e apoiante externo do projecto europeu.

Este texto já vai longo e o eventual leitor pode legitimamente perguntar: depois de todas estas ‘estorietas’, qual é a conclusão sobre o ‘Brexit’? A minha breve resposta será: ‘Keep Calm and Carry On!’. Não vamos fazer do Brexit um drama existencial. Foi democraticamente escolhido pelos eleitores britânicos e ratificado expressivamente nas mais recentes eleições parlamentares. Mas o Reino Unido, tendo saído da União Europeia, não saiu da Europa nem da NATO. Continua a ser o mais antigo aliado de Portugal (na mais antiga sobrevivente aliança do mundo, o Tratado de Windsor de 1386).

Creio que devemos procurar um acordo gentil com o Reino Unido e, ao mesmo tempo, devemos reforçar a União Europeia. Isto significa, em meu entender, reformar suavemente o dogma da ‘ever-closer union’; e passar a aceitar com naturalidade a concorrência civilizada entre dois entendimentos do projecto europeu: um mais integrador e supra-nacional, outro mais descentralizador e nacional. Não se trata de uma grande inovação: afinal de contas, todas as nossas democracias parlamentares nacionais assentam na concorrência civilizada entre pelo menos duas propostas políticas rivais — chamadas umas mais à esquerda e outras mais à direita. Não será possível termos também esta concorrência civilizada no seio da União Europeia?