A guerra é o assunto dos dias de hoje. Se estranhamos que assim seja é porque, algures no século passado, acreditámos que havíamos atingido uma sociedade mais pacífica. Acreditámos que havíamos chegado ao fim da história ou, por outras palavras, à terra prometida, da melhor e mais humana homeostasia: a terra da democracia liberal.

Contudo, hoje vive-se o entrincheiramento típico das guerras não só nas frentes de batalha, com mortes e feridos, mas também na esfera da discussão pública. Tal entrincheiramento leva os teóricos políticos a considerar que vivemos um momento de crise da relação entre liberalismo e democracia pelo que valerá a pena considerar o trabalho de Carl Schmitt, para quem a democracia e o liberalismo não tinham uma conciliação possível, já que a guerra desempenharia um papel central no político.

Schmitt vê o político como um fenómeno concreto da realidade humana onde se encontra o confronto: os homens distinguem-se por via do princípio amigo/inimigo e com isso há uma real possibilidade de conflito. Mais especificamente, estaremos no âmbito do político quando há um certo grau de intensidade dessa diferenciação que implica a guerra. Em última análise, o político está no âmbito da guerra.

E agora poderíamos questionar-nos: quem é o inimigo? Existirão várias formas de o apontar, bem como existem diferentes tipos de inimigos. Por exemplo, como Alexandre Franco de Sá sublinha, podemos ver o inimigo como inimigo político, contra o qual pode haver guerra, mas também o podemos ver como inimigo privado, contra o qual não há guerra (precisamente porque é um inimigo que não é político).

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Avançando mais um passo em torno desta relação entre política e guerra, Schmitt observa que o nascimento do Estado Moderno encontra as suas raízes na dissolução das guerras religiosas dos séculos XVI e XVII. Nesta senda, o Estado Moderno pôs fim aos conflitos entre católicos e protestantes através da neutralização política da esfera religiosa, ou seja, o Estado Moderno conquistou o monopólio de decisão acerca de quem é o inimigo político; passou a ter o monopólio da guerra e apagou a chama que alimentava a guerra religiosa.

Até às guerras atuais, igualmente travadas por seres humanos feitos de vísceras, viveram-se as revoluções democráticas que, neste âmbito, marcaram a possibilidade de o povo passar a ser soberano. Consequência: o povo exigiu a posse do monopólio acerca da decisão sobre a guerra; o povo passou a determinar a relação amigo/inimigo. Mas isto dá-se no âmbito público e não no privado. Como apontamos, o inimigo privado não é o inimigo político. O político de Schmitt vê o inimigo com um carácter político e existencial que não se mistura com oposições religiosas, morais ou económicas.

Schmitt não criminaliza o inimigo por fazer guerra nem considera que o inimigo seja moralmente inferior por ter uma confissão religiosa diferente. Mais, para Schmitt, a criminalização da guerra só convinha aos vencedores que, em nome da “paz”, “direito”, “justiça”, etc., procurariam ter o monopólio da decisão sobre o que é a guerra e a agressão militar. A reflexão de Schmitt acerca da guerra (algo da esfera do político) é, portanto, uma crítica à guerra que se diz “justa”.

Com isto, Schmitt alerta-nos para o pathos que demoniza o inimigo e legitima a guerra “justa” contra o mal e em nome do bem, como hoje se verifica entre aqueles que ativisticamente se posicionam nas guerras. Esta perspetiva de Schmitt, discorrida em obras no seu tempo de (transição para a) guerra, estimula-nos a pensar a nossa circunstância. Talvez as reflexões schmittianas sejam ainda mais importantes em tempos em que o consenso da paz se esvai como areia fina nas mãos de quem a tenta agarrar. Schmitt delineou ferramentas conceptuais que nos auxiliam a pensar “qual será o lugar da paz num mundo que está em guerra?”; “qual paz justifica a guerra?”; “poderá a guerra ser justa?”.

Com o intuito de abordar estas questões, a partir de uma perspetiva filosófica e com abrangência multidisciplinar, foi criado um grupo de leitura de Carl Schmitt com a chancela do CEIS20 (U. Coimbra), que contará com a presença do Professor Diogo Pires Aurélio para a primeira e introdutória sessão no dia 30 de outubro. A esta sessão seguir-se-á um conjunto de sessões plenárias de debate, mensais, entre investigadores académicos de Carl Schmitt. O acesso é livre, mas é necessária inscrição. Toda a informação encontra-se em lerschmitt.weebly.com.