O caso de Alfie Evans está a comover o mundo. A criança britânica de dois anos foi diagnosticada com uma doença neurológica degenerativa, para a qual não se conhece cura, e os médicos do Hospital Alder Hey, de Liverpool, já deram a sua vida por perdida, considerando inútil o recurso a mais tratamentos. À semelhança do que aconteceu com Charlie Gard no ano passado, a disputa entre os pais de Alfie (que queriam transferir o filho para um hospital, em Roma, que se comprometeu a manter o suporte vital) e o hospital (que queria desligar o respirador artificial e administrar-lhe cuidados paliativos até à sua morte) obrigou ao recurso à via judicial. Perante o diferendo, os tribunais britânicos, mesmo após o governo italiano ter concedido a cidadania italiana ao pequeno Alfie para facilitar o processo de transferência para Roma, acabaram por ordenar que se desligasse o respirador.
O respirador foi desligado há dias. Contra todas as expectativas e diagnósticos, Alfie sobreviveu seis horas sem respiração assistida e os médicos acabaram por aceitar retomar o fornecimento de oxigénio e hidratação.
Não me interessa discutir os contornos médicos ou legais deste caso, mas questionar a forma como a vontade dos pais foi ignorada em todo este processo. O princípio de que, em caso de discrepância entre a vontade dos pais e a das instituições que acolhem os filhos (como sejam os hospitais ou as escolas), cabe a um tribunal determinar a vontade prevalecente, é profundamente errado e sintomático dos tempos que vivemos. O papel outrora confiado aos pais, sobretudo em questões vitais relacionadas com a saúde e educação dos filhos, está a ser paulatinamente transferido para entidades estranhas à família, contribuindo – não de forma inocente – para a sua falência.
Os filhos não são pertença dos pais e o seu direito de decidir não reveste carácter absoluto. Mas os pais têm, por regra, um título de legitimidade especial, decorrente da sua condição, que lhes permite decidir o que é ou não melhor para os seus filhos. Esse é o princípio. É natural que assim seja: os pais, sendo as pessoas que mais amam os filhos, são os principais interessados no seu bem-estar; sendo as pessoas que os acompanham mais de perto, são também os que melhor conhecem as suas necessidades. Ninguém aceitaria que um tribunal viesse, em nome do bem-estar da criança, proibir um seu filho de comer bolos ou chocolates sob o pretexto de estar gordo ou impor a sua frequência numa determinada escola por esta transmitir os valores e princípios considerados certos. Por muito que discordemos das suas opções (e tantas vezes discordamos), esse é um papel que compete aos pais.
Assim, a intromissão de terceiros deve cingir-se apenas e tão só àqueles casos em que a ação dos pais se revele manifestamente prejudic ial para os filhos. O princípio, por isso, é o dasubsidiariedade e não o da equiparação. O Estado não deve substituir-se à família, mas suprir carências ou deficiências que reclamem uma intervenção. Perante uma situação como a de Alfie, o que caberia ao tribunal apreciar e decidir (assumindo que este dissenso merecia, sequer, uma apreciação judicial) era se a vontade dos pais era ou não manifestamente prejudicial para a criança; não o sendo, como parece ser o caso, não haveria por que não respeitar a sua vontade.
Esta linha nem sempre é fácil de traçar (veja-se, por exemplo, o caso dos pais que se recusam a vacinar os filhos). Mas numa situação como esta, em que o próprio hospital deu a vida de Alfie Evans por perdida, é profundamente chocante que a vontade dos pais não seja atendida. Ao não permitir que Tom Evans e Kate James esgotem todos os meios ao seu alcance, o hospital e os tribunais britânicos substituem-se injusta e injustificadamente aos pais e cometem um crime contra o pequeno Alfie. Isto deve inquietar-nos: quem são, afinal, os primeiros responsáveis pelos destinos dos nossos filhos?
Advogado