Os Livros
É então isto um livro,
este, como dizer?, murmúrio,
este rosto virado para dentro de
alguma coisa escura que ainda não existe
que, se uma mão subitamente
inocente a toca,
se abre desamparadamente
como uma boca
falando com a nossa voz?
É isto um livro,
esta espécie de coração (o nosso coração)
dizendo “eu”entre nós e nós?
Manuel António Pina, in Como se Desenha uma Casa, A&A, 2011
Hoje, quando acordei, o meu pensamento foi para Ana Luísa Amaral. Talvez me ficasse bem dizer que foi por causa de um verso dela, de uma linha. Mas a poesia dela e eu não precisamos disso entre nós. Explico.
Não conheci Ana Luísa Amaral. Fui conhecendo Ana Luísa Amaral, poema a poema. Faz-me muito feliz ter com quem ir pensando coisas que também penso, e, principalmente, as outras, aquelas que sem a pessoa estar presente na nossa vida nunca nos passariam pela cabeça. Tenho muita sorte: tenho bons poetas ao meu lado, andam, vaidosões, armados em versos pela casa toda.
Não seria melhor se estivéssemos juntos, na esplanada, a tomar café. Pelo contrário. Haveria todo aquele incómodo cheio do ruído que embrulha o pensamento, o corpo, e mesmo a vida, o relógio, as diferenças irreconciliáveis e, de certeza, as picuinhices enervantes que só têm beleza quando se ama de carne e osso.
Só me zanguei com Ana Luísa Amaral uma vez. Há bondade nela, delicadeza – ora isso dificulta até o mau génio de uma pessoa como eu. Aborreci-me com ela antes de ontem porque morreu.
Depois lembrei da história do almoço para as trezentas pessoas que compram livros de poesia em Portugal. Foi Manuel António Pina quem escreveu isto numa crónica. Fiquei triste por essa reunião que não se fez nunca, não se fez hoje, e deveria fazer-se sempre que morre um poeta, só para lhe garantir, enquanto a sua alma ainda está um bocadinho presa às saudades que deixa na terra, que é amado verso a verso.
Falei com Ana Luísa Amaral, ao telefone, duas ou três vezes. Temos dois grandes poetas em comum. Um é amigo de ambas, a outra é Emily Dickinson. É muito difícil falar com gente a quem se admira. O que é que se diz a alguém de quem se gosta de ler e de ter à disposição egoísta na estante: leio sempre o que escreve, gosto muito, obrigada? E depois? Fica-se ali num constrangimento de 2 de Paus por não haver nada a acrescentar. Tudo quanto é importante não tem palavras quando lhe falta o quotidiano do convívio, o conforto do abraço. E a conversa de circunstância está aquém demais até para os tímidos.
Hoje, quando acordei, o meu pensamento foi para Ana Luísa Amaral – obrigada.
Amo os meus poetas. Até o avesso lhes conheço, virei-os e revirei-os letra a letra. Gosto de pensar neles. Gosto de lhes agradecer.
A autora escreve segundo a antiga ortografia