Vá lá, vamos correr atrás dos ricos e dos poderosos. Veio aí mais um paper.
(Ai, é verdade, tinha ADSE e agora já não pode ir ao seu médico de sempre? Azar o seu que escolheu um médico que não obedece cegamente ao Estado. Agora nem no regime livre – aquele em que o utente paga para depois ser reembolsado – pode ir ao seu médico ou fazer os tratamentos que começou. Mas quem se vai preocupar com estas questões quando tem tanto paper para analisar? Corra atrás dos ricos que isso faz muito bem à saúde!)
Os últimos papers chamam-se Pandora. Bonito nome, não é? Sempre ficam mais apessoados com nome de mulher, para mais na versão mitológica, porque isto de ligar os papers a países pode lembrar-nos a nós, portugueses, que estamos à espera desde 2016, dos nomes dos políticos e jornalistas que recebiam pagamentos do saco azul do GES. Esses nomes constavam nos Panama Papers mas continuamos sem os conhecer. Afinal, isto dos papers também tem os seus limites e as suas deontologias: divulgam-se nomes a trouxe mouxe mas só de alguns.
Seja como for, agora, em 2021, já não temos tempo a perder com essas minudências. Vêm aí os Pandora Papers!!! E mais uma vez lá vamos em corrida atrás dos ricos e poderosos. Correr atrás dos ricos é aliás o desporto mais praticado pelos povos que empobrecem. De Cuba à Venezuela, correr atrás dos ricos foi uma actividade de tal forma bem sucedida que no fim só sobraram pobres e, claro, um grupo muito restrito de ricos, a saber os líderes da corrida contra os ricos. Pôr o povo a correr contra os ricos é uma actividade de alta rentabilidade. Política e não só.
(A propósito de corridas, a que velocidade seguia o carro em que viajava o ministro Eduardo Cabrita quando a 18 de Junho atropelou mortalmente o operário Nuno Santos? Não haverá um paper que fale disto?)
A cada um destes papers tenho crescentes dúvidas sobre os bastidores deste tipo de jornalismo que vive de fugas de informação e experimento uma irritação crescente contra a amálgama populista entre quem enriqueceu com a sua actividade e quem roubou: basta ter dinheiro e procurar pagar menos impostos para se entrar na categoria de mediaticamente suspeito. Ora colocar no mesmo plano pessoas que sabemos como enriqueceram, como acontece com Julio Iglesias, que vendeu mais de 300 milhões de discos, ou Guardiola, que é treinador de futebol, com o de alguém que enriqueceu de forma ilícita não é aceitável. Ou só o será se o objectivo final de tudo isto for a criminalização da riqueza e da procura de pagar menos impostos, mesmo que dentro do que se entendeu ser legal. Como bem assinala Henrique Pereira dos Santos “Se eu for um assassino, a lei e a sociedade reconhecem-me o direito de não me incriminar, ninguém me pode obrigar a confessar o meu crime ou a dizer o que quer que seja que possa ser usado contra mim, o direito a estar calado é reconhecido de forma absoluta. Quando chegamos aos impostos, este direito a não me incriminar não é reconhecido, pelo contrário, a lei estabelece, de forma imoral, que eu tenho a obrigação legal de me denunciar ao fisco.“
Como sabe qualquer português com rendimentos médios, boa parte da legislação e dos fantásticos procedimentos anunciados para controlar os muitos ricos e as fraudes acabam sim a complicar ainda mais a vida aos não ricos, quando não aos pobres: a fotografia de Joe Berardo devia estar afixada naquelas resmas de papéis que os bancos nos exigem para conseguirmos um empréstimo para uma empresa, pois se a Joe Berardo tivessem sido aplicados pelos bancos os critérios usados para os demais mortais não só não teria obtido crédito algum como duvido até que tivesse conseguido abrir uma simples conta bancária.
(Esta fixação nas offshore – a da Madeira também conta? – sucede à indignação com os lucros milionários das empresas. Jerónimo de Sousa alertava-nos com fervor contra esse flagelo. Valeu-nos o estado anémico das empresas portuguesas para que essa chaga dos lucros milionários tenha sido devidamente debelada).
Ao primeiro sinal de fraude, burla, crime… em Portugal não se procura perceber o que aconteceu ou como aconteceu. De imediato se decide que há que mudar a lei. Ora muito frequentemente a lei ou o procedimento adequado já existiam, simplesmente não foram aplicados. Veja-se o caso de João Rendeiro que usufruiu de um termo de identidade e residência em condições absolutamente insólitas, para não dizer mais. Não duvido de que se se mexer na lei, os cidadãos comuns que forem sujeitos a termo de identidade e residência terão a sua vida ainda mais complicada. Obviamente a severa legislação e os rigorosos procedimentos continuarão a não ser aplicados àqueles por causa de quem se mudou a legislação.
(Uma dúvida profunda atormenta-me há dias: dado o unanimismo das redacções portuguesas na hora de apelidar Rui Fonseca e Castro como “juiz negacionista” vão passar a tratar como juiz ou juiza “xoné” quem aceitou que João Rendeiro desse a morada da embaixada portuguesa em Londres como local para ser contactado após viajar para Inglaterra?)
A voracidade fiscal de um poder político que esconde a compra de clientelas e de corporações através de um discurso de diabolização da riqueza levou à constituição de uma ditadura fiscal. O Estado português sabe o que compramos no supermercado, os restaurantes a que vamos e a que horas, os combustíveis que escolhemos. Nunca nenhuma polícia política teve tanta informação sobre os cidadãos – todos eles, note-se – quanto aquela que neste momento acumula a Autoridade Tributária. Pior, como aqui alertou António Gaspar Schwalbach, o “NIF substituiu, pura e simplesmente, os nossos nomes e quaisquer outros números de identificação” funcionando já como um número nacional único, apesar de a Constituição o proibir expressamente.
Como é óbvio tudo isto tem tornado os ricos muito mais cautelosos e reforçado a ditadura fiscal sobre as pessoas comuns. Mas se pudéssemos responder livremente o que diríamos quando confrontados com a seguinte pergunta: o que acha que devem fazer as pessoas que a partir do próximo OE podem ser sujeitas a uma taxa efectiva de imposto na ordem dos 50,5% a 53%? Note-se que os megamilionários que em Portugal incorrem nessa taxa são pessoas que ganham mais de 80 mil euros por ano e consequentemente vão ser objecto de englobamento obrigatório (o tal que era para não existir mas afinal vai acontecer) dos seus rendimentos classificados como “especulativos”.
Tenho três certezas: os verdadeiramente ricos devem rir com o nosso conceito de riqueza; o englobamento obrigatório vai ser alargado nos próximos orçamentos a outros escalões menos abonados, pois nunca haverá dinheiro qb para pagar o preço de o PS ser governo; “Portugal papers ou a história de como empobrecemos” é um belo título para aquilo que nos está a acontecer. Mas para tal não é necessário nenhuma fuga de informação nem nenhum consórcio internacional de jornalistas, basta olhar para Portugal.