Quando, nos anos 70, li pela primeira vez o livro de Luís Sttau Monteiro Angústia para Jantar ficou-me de imediato a admiração pela escrita deste excelente romancista, dramaturgo e expoente fantástico da crónica e do jornalismo. Nos meus anos de estudante adolescente, deliciaram-me também as suas “Redações da Guidinha” na leitura no Diário de Lisboa enquanto crónicas de crítica social que muito me ajudaram a perceber melhor a sociedade em que vivia e não queria continuar a viver. Porque tinha que mudar. Como mudou. Ou está lentamente a mudar.

Durante os tempos de confinamento foi Sttau Monteiro um dos autores que reli e, a partir dele, muito repensei o que poderia mudar na sociedade que vivia em recolhimento e promessas de “um novo normal”. E que estava a ficar cheia de angústias, previsões de crescentes e complexas situações sociais. O tal “novo normal” em democracia que sempre se deseja e teme.

Com uma lógica de pensamento entre a sua magnífica obra de ficção Angústia para Jantar personificada no momento atual na minha interrupção dos almoços mensais que mantinha com amigos e em que muito discutíamos a evolução das classes sociais de um Portugal (sempre em crise…) com críticas crescentes ao que ia acontecendo, sobretudo desde o final dos anos 2010.  E as “Redações da Guidinha”, neste caso personificadas nas conversas digitais que mantive com a minha neta Madalena sobre como era ter escola sem ir à escola e estar a desenvolver a escrita sem pontuação e “máscara”, à espera de “quando é que isto vai voltar a ser como era porque agora já não era como devia ser”, pelo meio nunca esqueci os meus alunos de temas da saúde e os meus ex-colegas de gestão hospitalar no grande Hospital Amadora Sintra que “lá bem na frente de batalha” não dormiam e pouco tempo tinham para pensar ou ler. Angustiados.

Claramente, agora que a pandemia está a ficar mais “ao ralenti” e, ao retomar “devidamente mascarado e já vacinado” a docência com aulas presenciais na Universidade Católica, decidi com os alunos das áreas da Saúde e Social (médicos, enfermeiros, farmacêuticos, assistentes sociais, entre outros) colocar a debate como estavam eles (a maioria esteve na frente da batalha pandémica) em termos de “angústia para retomar a vida normal” salpicados “por “redações saudáveis” sobre o que aconteceu e continua a acontecer. Já que ainda é impossível ter a “alegria para jantar” em grupo.

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As conclusões desses debates foram simples e claras. Mas que me deixaram, no entanto, alguma “angústia para retomar”, mas também alguma vontade de escrever “redações ao jeito da Guidinha”.

Para já ficam apenas a síntese dos guiões apontados:

  • De uma forma geral, quase todos considerámos que “isto não mudará como tanto se desejou e tanto se anunciou”. Mas é preciso perceber que o mundo está a mudar e as regras estão e vão ser “digitalmente” muito diferentes;
  • A par desta visão angustiante, dos debates saiu reforçada a perspetiva de que “Saúde e Social” ou jogam no mesmo campo, ou estaremos progressivamente a jogar em “fora de jogo”. Como se viu e continua a ver na falta de integração de políticas públicas mais ou menos “resilientes” e na falta de uma União Europeia da Saúde em particular;
  • Mesmo para além da pandemia e dos seus contornos ainda não totalmente contabilizados, o que se viu foi excesso de voluntarismo e muito correr atrás do prejuízo. Que só o processo de vacinação transformou em pequeno lucro por “militarmente organizado e controlado”;
  • O ênfase real e mediático na resposta do SNS (Serviço Nacional de Saúde) no combate ao vírus foi importante e crítico. Mas a discussão quanto ao futuro do SNS (Sistema Nacional de Saúde) é o grande tema para o futuro;
  • A integração de cuidados de saúde (cuidados primários, hospitalares, de urgência/ emergência, de recuperação, …) com os cuidados sociais e com a participação do poder autárquico dotado de competências solidamente profissionais é ainda uma miragem;
  • O papel do Estado em Portugal, que na saúde assume todos os papéis num SNS integrado/burocrático: prestador/”produtor” de cuidados de saúde, empregador, financiador e  gestor, deverá ser repensado numa perspetiva de inovação e não apenas numa situação de “enquadramento institucional e financeiro” qb;
  • A combinação entre “meritocracia” e “desenvolvimento” precisa de mais dinheiro, mas sobretudo de mais crédito às competências técnicas e comportamentais dos profissionais da saúde e do social;
  • A “mobilidade” de profissionais entre organizações “públicas”, “privadas” e “sociais” é um dado que não retrocederá e está ligada à angústia do evoluir profissionalmente e ser mais bem remunerado;
  • Com tanto webinar temático realizado sobre “o que fazer”, nota-se bem nas palavras eloquentes e nas “apresentações gráficas de suporte” que entre a “perspetiva being – ser” e a “perspetiva doing – fazer”, há ainda demasiado por fazer e ambas continuam distantes no convergir para ser;
  • No fundo, o que vivemos, brincando com coisas sérias (mas também resilientes…), como escrevia a Guidinha nos anos 70 do século passado numa das suas redações a propósito de um piquenique: “A minha Mãe vai à mercearia ao bacalhau e começa logo a perguntar se o bacalhau é mesmo bom e ele responde que o de 30 é uma beleza a minha Mãe fica toda consolada por saber isso e compra dois rabinhos do de 22 que está lá há mais de dois anos como isso não chega volta à praça e compra um quilo de besugo que está a 9 o que é preciso é salgá-lo bem e misturá-lo com o bacalhau que ninguém dá pela diferença (…)

Porque sou positivo e otimista resta-me continuar a tudo fazer para que muito mude. Para além de vírus, vacinas, máscaras, desabafos e medos.

E citando Sttau Monteiro na sua Angústia para Jantar: (…) “Nunca vi nada que não fosse lógico. Tudo tem uma lógica, muito embora esteja por vezes escondida. É a isso que chamamos o segredo das coisas. O que distingue os homens lúcidos dos inconscientes é que os primeiros procuram descobrir a lógica das coisas, ao passo que os segundos julgam que as coisas surgem por si próprias e procuram, não a sua lógica, mas a sua rima.” (…)