Um daqueles livros que se devem ler e reler ao longo da vida, é a Utopia de Thomas More, advogado, chanceler de Henrique VIII e membro da Câmara dos Comuns. Escrito em 1516, há mais de 500 anos, continua a marcar o refletir dos que gostam de repensar e lutar por uma sociedade mais “salutarmente justa”. Diferente para melhor. Diferente da que nos atemoriza e atualmente estamos a viver e antever. Não apenas pelo que se passa na saúde pública, no SNS, na economia em geral, mas também pelo que tínhamos imaginado no domínio social e político. Mas agora, dificilmente vai acontecer para as gerações atuais e futuras, sobretudo na perspetiva da sociedade do bem-estar. Do melhor viver.

O livro é simples de ler nas suas duas partes. Inspirado em A República, de Platão, e escrito em contexto medieval, deve levar-nos sempre a pensar sobre as hipóteses de construção de uma “nova” Europa, de um “novo” mundo. A partir do que se vivia à época e de uma evolução que More preconizava, muito espaço há para pensar e idealizar o futuro. Mas, sobretudo, construir e fazer viver horizontes hoje.

O texto que se mantém atual nos ideais genéricos de uma nova sociedade, apesar das várias vagas de mudança da sociedade por que temos passado, fica reforçado e permite até, com alguma criatividade, uma leitura Covid-19. Porque, a exemplo da Idade Média, nos tempos pós-peste negra, nos anos 1500, alguns simples aspetos práticos que hoje vivemos, foram observados. Por exemplo, verificou-se que “em termos de saúde, a proximidade tornava a contaminação viável”. E foi, em anos posteriores, o médico francês Charles Delorme (1584-1678), médico de Luis XIII, que defendeu o uso de vestimentas especiais durante uma epidemia de peste em Marselha. E se More preconizava para a sua Sociedade Utopiana “que o bem-comum seria mais precioso do que o bem individual num Estado de bem-estar social com hospitais gratuitos”, parece que o que temos hoje nos SNS nacionais, não andando longe no objetivo, precisa de ser repensado nas concretizações. Reorganizado. Otimizado segundo a dimensão tecnológica e o humanismo da nova Medicina. E das ameaças epidémicas e pandémicas que se vivem, ou podem vir a surgir no futuro.

Sendo o livro um clássico, tem curiosidades interpretativas, mesmo que um pouco forçadas, para o mundo atual: a sua escrita foi iniciada quando o autor, que vivia em Inglaterra, se encontrava a trabalhar na região dos Países Baixos. Curiosamente, uma parte dessa região (Holanda), no atual contexto pandémico e de crise económica, é muito avessa a uma maior solidariedade social e económica visando construir uma Europa mais Europa. E o livro foi terminado no regresso de More a Inglaterra que, recorde-se, tristemente e há poucos meses, decidiu “brexitar” da União Europeia, antes da Covid-19 ter chegado com a sua onda de doença, morte e destruição económica.

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Hoje, ao contrário do que está no primeiro livro da Utopia, que era de conteúdo crítico à sociedade de então, é um facto que não há camponeses a ser expulsos do campo para as cidades. Nem bandos de ladrões à solta numa sociedade com justiça cega e cruel e uma estrutura social baseada numa organização em que a realeza vivia para ter mais riquezas e fazer a guerra. Em que as perseguições religiosas eram uma realidade terrível e o povo era oprimido e forçado fisicamente a trabalho incessante para manter o exército, a corte e uma multidão de ociosos. Hoje, felizmente, temos um mundo e, particularmente, uma Europa mais justa, mesmo que ainda cheia de muitas desigualdades sociais e económicas. Mas com crescentes laivos de “voltar atrás” nas conquistas democráticas pelas razões que se vão observando no dia-a-dia atual, mesmo quando o mundo se tornou global e transparente, fruto da última vaga de mudança provocada pela revolução tecnológica e informacional.

Também hoje, e ao contrário  do que era preconizado para a “República da Utopia” por More, no segundo livro, não se vê ainda totalmente implementado o princípio sagrado de que não se deve prejudicar ninguém em nome da religião, ou enfatizar-se a intolerância e o fanatismo. Ainda que o povo possa escolher os seus ideais e crenças, e os vários cultos possam coexistir em harmonia ecuménica num quadro político de democracia formal, os benefícios da paz têm sido bons, mas escassos no tempo.

Ouso, num momento tão difícil e desafiante para o mundo, pensar que a pandemia Covid é também um momento de esperança na reconstrução de um mundo mais justo. Sobretudo, no acesso aos cuidados de saúde e humanização da nova Medicina e do bem-estar social. Utilizando as palavras de Miguel Torga, médico, vale a pena ser positivo mesmo que, por vezes, se possa rondar a utopia “Moriana”: “Recomeça… se puderes, sem angústia e sem pressa e os passos que deres, nesse caminho duro do futuro, dá-os em liberdade, enquanto não alcances não descanses, de nenhum fruto queiras só metade”.