“Estabilidade que só ele – o Governo – e a sua maioria podem enfraquecer ou esvaziar. Ou por erros de orgânica, ou por descoordenação, ou por fragmentação interna, ou por inação, ou por falta de transparência, ou por descolagem da realidade.”
Presidente Marcelo Rebelo de Sousa, 1 de Janeiro de 2023
1 E de repente Marcelo Rebelo de Sousa acordou da sua longa hibernação como Presidente da República para fazer o mais sério aviso ao PS de António Costa desde que entrou para o Palácio de Belém em 2016. A mensagem de Ano Novo não tem outra interpretação possível: o Governo tem um ano para mudar de rumo ou vamos ter eleições antecipadas.
Como disse Luís Marques Mendes no seu espaço de comentário, “é muito raro acontecer, mas às vezes há semanas em que, de repente, tudo muda.” É verdade.
Contudo, nada é definitivo. Vamos por partes, analisando os três grandes eixos que nos permitem perceber se a atual maioria chegará incólume a 2026.
2 Tudo depende, em primeiro lugar, do próprio primeiro-ministro António Costa e do seu Governo. Começando pelo reconhecimento de que algo está mal, de que muitos erros foram cometidos e que é preciso mudar de rumo.
Como é que alguém com um historial (antigo e recente) de (constante) arrogância e algum autoritarismo, pode fazer a necessária auto-crítica quando ainda há bem pouco tempo exclamava um estupidificante “habituem-se!”? Eis a pergunta de 1 milhão de euros, cuja resposta certeira ajudará a explicar o futuro.
Eu, que nunca pertenci ao grupo largamente maioritário de comentadores que sempre elogiaram os grandes dotes de político “habilidoso” (que raio de elogio quando a diferença entre um habilidoso e um chico esperto é inexistente), digo desde já que não acredito em qualquer autocrítica de Costa.
Pela sua personalidade política, António Costa prefere a fuga para a frente e confunde o reconhecimento de erros como uma fraqueza de quem está a exercer o poder. António Costa é muito semelhante a José Sócrates nesse aspeto e cede sempre à atração pelo abismo.
Aliás, não será certamente por acaso que foi o próprio António Costa a recuperar a ideia de se candidatar a um cargo europeu antes de 2026 numa das várias entrevistas que concedeu em dezembro de 2022, no caso a Francisco Pinto Balsemão, chairman do Grupo Impresa.
Num daqueles discursos de meias-palavras, Costa apenas recusou ser candidato presidencial e disse o mesmo de sempre sobre a hipótese de se recandidatar a um novo mandato como primeiro-ministro. A verdadeira novidade foi o próprio Costa deixar em aberto o seu interesse em suceder a Charles Michel como presidente do Conselho Europeu, recordando aliás que é um membro ativo desse órgão.
Ora, o segundo mandato de Michel terminará em setembro de 2024, sendo que, como o próprio Costa recordou, “o PS tem um congresso em 2023” e “outro em 2025”. E é essa a segunda novidade da entrevista do líder socialista a Pinto Balsemão: admitiu não se recandidatar a líder do PS em 2023.
Tal só acontecerá se António Costa tiver hipóteses de ganhar o lugar europeu com que sonha. Conhecendo o trajeto político de Costa, não me parece que a ameaça de Marcelo de dissolver o Parlamento lhe retire o sono.
3 Isto leva-nos a outra questão, que foi referida expressamente pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa na sua mensagem de Ano Novo: a “fragmentação interna” da maioria socialista que poderá levar à queda do Governo.
Não só essa “fragmentação interna” começa no próprio sonho europeu de António Costa, como a mesma já é clara, a cores e em alta definição, para todos os que acompanham o Governo.
Veja-se o que aconteceu logo após a demissão de Pedro Nuno Santos: os pedronunistas atiraram forte e feio nos jornais contra Fernando Medina e as suas alegadas responsabilidades no caso Alexandra Reis, tentando fazer com que o seu chefe de fação interna não caísse sozinho.
Foram precisamente esses ataques em off the record em vários jornais que levaram a uma conferência de imprensa inusitada de Medina à saída, imagine-se, do Ministério da Economia.
Entre explicações claras (a sua mulher não teve responsabilidades na atribuição da indemnização a Alexandra Reis), ameaças de processos judiciais a jornalistas e comentadores e omissões convenientes (a indemnização de 500 mil euros foi noticiada pelo Expresso em maio de 2022), Medina respondeu essencialmente aos seus opositores internos. Ora, tal é uma clara demonstração de que a guerra interna no PS já é um factor desestabilização do Governo.
Mais do que isso: aproveitando o vazio de poder no Ministério das Infraestruturas, Fernando Medina ainda apontou a porta da rua à administração da TAP quando afirmou preto no branco que o pagamento de 500 mil euros não foi legal, porque não teve a aprovação das Finanças, que tem a tutela financeira sobre a TAP. Com afirmações destas, a auditoria da Inspeção Geral de Finanças é só um pro-forma.
4 Acresce a tudo isto que António Costa é um primeiro-ministro que tem a desresponsabilização constante com a sua imagem de marca. Costa gosta de ‘sacudir a água do capote’, homenageando assim o principal desporto nacional, o que faz com tenhamos um chefe de Governo que não se julga responsável por absolutamente nada.
O Serviço Nacional de Saúde (SNS) parece o Titanic a afundar-se de forma lenta e segura mas António Costa diz que não faz escalas, que o seu Governo até aumentou brutalmente o orçamento no SNS e que o caos é comum a outros países europeus. Responsabilidade do Governo? Nada! A culpa é dos médicos, enfermeiros e, última instância, dos doentes que ainda não fazem turismo de saúde a Espanha para resolverem os seus problemas.
Vários milhares de alunos não têm professores? A culpa não é do Governo que não conseguiu prever a aposentação voluntária e legal de docentes. Tal como na Saúde, a culpa é de todos (a começar pelos professores) quando o que está em causa é a desorganização pura e dura de um Executivo que tem um ministro que está no Governo desde praticamente o início do ciclo do poder costista.
5 E chegamos à grande questão dos fundos europeus — que o Governo de António Costa não consegue executar em tempo útil depois de ter cometido o erro estratégico de construir um Programa de Recuperação e Resiliência à base do Estado e das empresas públicas.
Como Marques Mendes recordou este domingo, Portugal vai ter quase 11 mil milhões de euros de fundos europeus para distribuir. Tendo em conta que 2023 poderá vir a ser um ano muito difícil, com mais quebra de poder de compra (por via da inflação ainda elevada), uma recessão à escala europeia — logo uma queda das exportações e possível estagnação ou até mesmo recessão também em Portugal —, os fundos europeus têm um papel ainda mais importante
E é aqui que entroncam os grandes avisos de Marcelo Rebelo de Sousa. Sei claramente que o Presidente da República tem dado grande atenção à gestão dos fundos europeus desde a primeira hora. Por isso mesmo, os vários ministros que gerem os fundos europeus, com destaque para Mariana Vieira da Silva, têm ido ao Palácio de Belém explicar de viva voz a Marcelo o que se passa com a execução dos fundos.
Mas a falta de resultados, por via da baixa execução, continua a ser chocante.
Por isso mesmo, mais do que a substituição de Pedro Nuno Santos ou de outros nomes, a remodelação que António Costa levará a cabo nos próximos dias, poderá mexer na estrutura orgânica da gestão dos fundos europeus. Ficará Mariana Vieira da Silva com a gestão centralizada dos fundos europeus, saindo possivelmente Ana Abrunhosa do Governo? Ou ficará outra figura próxima de Costa com tal gestão centralizada?
Veremos se as críticas (cada vez mais insistentes) de Marcelo Rebelo de Sousa sobre esta matéria terão eco junto do primeiro-ministro. É que, se não tiverem, o próximo alvo não será uma ministra de segunda linha como Ana Abrunhosa…
6 Não está causa, a curto prazo, qualquer dissolução da Assembleia da República. A mensagem de Ano Novo deixou claro que, a acontecer, tal só se verificará em 2024, ano em que teremos as eleições europeias — escrutínio eleitoral esse que tem um historial de castigo dos partidos que estão no Governo.
É por isso que é importante recordar que a gravidade dos casos e casinhos em que o Governo de António Costa está enredado já ultrapassaram em larga escala todos as situações que marcaram a vida do Executivo de Pedro Santana Lopes e que levaram à dissolução do Parlamento em 2005 por decisão do Presidente Jorge Sampaio.
Marcelo Rebelo de Sousa apenas tem o dever de continuar atento, cumprindo o seu papel constitucional de árbitro do sistema político — e não ter a tentação, como tendo tido nos últimos tempos largos, de ser um jogador que entrou para a equipa do Governo.
7 Já o PSD, o principal partido da oposição, terá de acelerar o passo na construção de uma maioria social que lhe permita, em primeiro lugar, ganhar as eleições europeias de 2024 e, na ocasião que se proporcionar, vencer as eleições legislativas e formar Governo.
Luís Montenegro não terá de fazer qualquer alteração profunda no seu posicionamento político mas terá encurtar calendários e de aumentar de forma significativa o seu grau de escrutínio político e parlamentar.
Desde logo, começando pelos casos que mais incomodaram diretamente António Costa: os casos BANIF e BIC. O PSD optou por um escrutínio soft, que consistiu no envio de perguntas para o primeiro-ministro, as quais não tiveram qualquer resposta até ao momento.
Depois de não ter apoiado a Comissão de Parlamentar de Inquérito proposta pelo Chega (e apoiada pela Iniciativa Liberal), Luís Montenegro tem a opção de avançar com uma comissão parlamentar de inquérito potestativa. Mesmo que não o faça (como é o mais certo), uma coisa é clara: Montenegro tem de aumentar a intensidade do escrutínio político ao Governo.
Porque senão a união interna do PSD fica com os dias contados. Posso estar enganado, mas não foi por acaso que Pedro Passos Coelho optou por voltar a abordar o tema da eutanásia para mostrar o caminho que deveria ter sido seguido pela direção de Montenegro. Essa definição do que deveria ter sido feito (e não foi), é o primeiro indício claro de que Passos Coelho está atento.
Vamos ter meses muito interessantes pela frente.
Desejo a todos os leitores um Bom Ano Novo com saúde e sucesso.
PS — Ouvi os vários discursos de Lula da Silva durante a sua tomada de posse como 39.º Presidente do Brasil e constatei a contradição clara entre afirmar que governará para todos os brasileiros e continuar o combate político contra Jair Bolsonaro. Lamento mas a vitória de Lula da Silva por uma reduzida margem não foi uma vitória da democracia. Foi uma vitória de Lula e do Partido dos Trabalhadores e uma derrota de Bolsonaro. Independentemente de eu pensar que a derrota de Bolsonaro foi mais do que merecida, certo é que o Brasil está claramente dividido e não é com a continuidade do combate político sem tréguas aos bolsonaristas que Lula unirá o país.
Não há donos da democracia, nem donos da verdade. Uma vitória da esquerda (e logo de alguém que controlou o Estado e permitiu que o seu partido montasse redes de corrupção em larga escala quando passou pelo poder), não é a vitória da democracia. Tal como uma vitória da direita não faz com que a esquerda tenha de ser diabolizada. Eis algo que também tem de se aprender em Portugal.
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