1. Foi há dias e foi bonito. Ainda bem. Celebrava-se a arrancada para a grande aventura, a primeira viagem, o primeiro porto onde encostaram as caravelas portuguesas. Os navegadores chamaram-lhe Porto Santo. As autoridades – as de lá e as de cá – representaram o Estado, saudando a data. E eu que tão bem conheço a minúscula ilha, gostaria de lá ter estado. Um belo arquipélago, a Madeira. Vem a propósito porque escrevo, dia por dia, seis séculos depois do primeiro português ali ter aportado, em dia de Todos os Santos.

2. Mas a Madeira também vem ao caso por razões políticas que justificam a só aparente falta de contexto, em semana capturada por Web Summits e outras webs.

É que valerá a pena antecipar o duelo entre dois homens que mutuamente se medem: Miguel Albuquerque, presidente do Governo Regional (PSD) e Paulo Cafofo (apoiado pelo PS), presidente da Câmara do Funchal. Porquê? Porque pela primeira vez as sondagens colocam Paulo Cafofo em (quase) pé de igualdade com Albuquerque e com isso emprestando verosimilhança a um combate entre forças políticas subitamente “iguais” – coisa nunca vista na Madeira, onde o PSD reinou sozinho e com grande á vontade durante décadas.

Mas se para o presidente da Câmara as futuras eleições serão uma prova de vida ou de morte política, para António Costa elas serão (ainda mais?) cruciais: o primeiro-ministro não terá – e sabe-o – melhor oportunidade para colher a flor madeirense que lhe falta para o seu bouquet, nas próximas legislativas e assim ficar o dono eleitoral disto tudo: Continente, Açores e finalmente a Madeira. Esse dantes inexpugnável arquipélago, conhecido como um bastião alaranjado. A empreitada é por isso coisa séria para o Largo do Rato: activada por Lisboa e bem manuseada nas duas ilhas, está em curso uma geringonça insular (“sim, vamos lá fazer uma igual à de cá”, confirmava-me há semanas, um ministro, com invejável beatitude).

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O PS/Madeira terá obviamente a parte de leão e depois se verá se algum dos restantes cinco partidos que hoje apoiam Cafofo na Câmara, se sentará, em caso de sucesso, na geringonça madeirense. De Lisboa têm ido ideias, apoios e alguma ansiedade. Da Madeira chegam á capital boas notícias: o candidato “sai-se bem”, cria empatias e simpatias, tem boas iniciativas. Costa prepara-se para rejubilar. Com ele mesmo. Mas há distrações políticas imperdoáveis e uma delas seria esquecer a costela guerrilheira politicamente intuitiva, combativa e igualmente implacável de Miguel Albuquerque, a contar os dias para ir — “ a doer” — para “o terreno”…

Antecipando o duelo, entrevistei cada um destes galgos, no verão. As entrevistas aparecerão em breve, por ora fica

3. Era um deslumbrante fim de tarde de Julho no Funchal, com aquela atmosfera um pouco tropical, feita de calor húmido, uma luz coada, densa vegetação, flores rubras, palmeiras, muitas palmeiras, e mar e mar. Encontrei-me com Miguel Albuquerque na Quinta da Vigia, sede do Governo Regional a que ele preside desde 2016 (após ter ganho o PSD a Alberto João Jardim, em 2014). Falamos num terraço debruçado sobre os jardins onde se ouvem pássaros. Não já as tonitruantes araras do tempo do dr. Jardim – aliás expeditamente despachadas para morada mais longínqua ao segundo dia de ofício governativo de Miguel Albuquerque — mas aves cantadoras de melhores maneiras. Diante de um sumo de maracujá quase me deixo contaminar pela harmonia doce daquele fim de tarde mas há que trabalhar: evoco a governação, o PSD, a oposição, a vida parlamentar, os problemas, a relação “da Região com a Republica” como por lá se diz. Evoco o roteiro, numa palavra, mas o roteiro é talvez menos ameno que a quietude amável do cenário.

4. Miguel Albuquerque teve a ousadia politica de avançar sozinho contra Alberto João Jardim (e o mérito da sua própria solidão política) e logo a seguir teve o talento de convencer militantes, eleitores e madeirense que se iniciava nova vida, quando afinal o PSD governava a ilha há mais trinta de anos. Hoje, fia um pouco mais fino. Apesar das boas notícias, alguma coisa parece ter-se embrulhado no modo como ele se lidera a si mesmo na chefia do executivo. Há questões que se arrastam, sublinhadas por uma relação que se deteriora com a República: o presidente do Governo Regional convive com uma envenenada suspeita (suspeita é um dizer meu, ele fala em “manipulação”) dos socialistas de Lisboa, capitaneados pelo primeiro-ministro, em travarem os compromissos da República com a Madeira. Os que “pertencem à autonomia”, é isso que o presidente madeirense reivindica.

Cosmopolita e arejado, habitualmente bom conversador, parece por vezes impacientemente espantado nas explicações que dá às minhas perguntas, de tal modo é por si adquirido que está a governar bem, a governar como deve. Remodelou o governo, inventou a figura de “vice”, foi buscar (nuance interessante) um jardinista para ela, fala de bons resultados. Fornece exemplos, índices, números.

Percebo porém que a tarefa talvez o desalente ao sentir-se, com mais ou menos razão, injustamente tratado por Lisboa: o colecionador de rosas estará a descobrir-lhe alguns espinhos mesmo que a política lhe corra no sangue.

5. Mas de repente, tudo se altera neste prestar de contas a uma jornalista curiosa: o tom de voz muda, a posição na cadeira também, a sombra que por vezes lhe toldava o olhar dá lugar a um brilhozinho cáustico, o governante dá lugar ao guerrilheiro:

“Ah dizem isso? Que vou perder? Em Lisboa dizem isso? Vão ver…” Miguel Albuquerque tamborila com os dedos no vidro da mesa, absorvido pela bomba atómica que atirei para aquele terraço: a minha certeza bem informada no (imenso) empenho político da geringonça nacional na vitória de Paulo Cafofo, nas próximas legislativas. Não que Miguel Albuquerque não soubesse (“de cor”) do empenho socialista, ignorava é que fosse “vox populi” a aposta na sua derrota e na do PSD.

A partir daí, tudo o que ouvirei é parecido com aquilo que os madeirenses ouviram na nas eleições internas do PSD em 2014 (contra Jardim) e um ano depois, para o governo, (contra sete partidos políticos madeirenses): um discurso politicamente forte, disparado com contundência contra o adversário. O adversário é hoje um mosaico onde se confundem Paulo Cafofo, a Câmara do Funchal, a coligação que a sustenta, o PS nacional, António Costa, a geringonça, Lisboa.

“As vezes há uns rumores aqui na Madeira sobre mudanças… Mudar para pior? Os madeirenses não são estúpidos.”

Despeço-me. Mas de quem? Do guerrilheiro? (“eles não percebem que até é bom duvidarem de mim, sou um tipo de combate, vou para ganhar e com percentagem maior do que pensam…”). Ou do governante confiante?

“Sou as duas coisas: governante e combatente. E sou bom nas duas.”

6. Anda de moto, cita o Papa, é bem-falante, gosta de se ouvir. É determinado e aprendeu depressa. Haja ou não substancia ideológica ou experiência política por detrás do seu verbo veloz, Paulo Cafofo personifica o mais relevante facto político ocorrido na Madeira, após o longo jejum da oposição: o de desafiar, de igual para igual, o todo poderoso PSD regional. Não sendo ele próprio filiado no PS /Madeira – nem em partido nenhum – a coisa espanta mas a perplexidade logo se esbate quando se sabe que foi o próprio líder socialista local, Emanuel Câmara, fortemente aconselhado na Madeira e em Lisboa, quem abdicou no independente Cafofo, na candidatura ao cargo de Chefe do Governo, mantendo-se apenas na chefia do partido. O que tem de ser tem muita força, a troca era imperiosa: com este figurino político talvez os socialistas ilhéus saíssem – de uma vez por todas – de uma cepa torta com 40 anos.

Conheço Paulo Cafofo numa sala do município, mangas de camisa, atitude informal, discurso directo. Oferece-me café, passa ao ataque.

O autarca do Funchal vem da Madeira “profunda”, ensinava História numa escola rural e tinha posição cimeira no Sindicato dos Professores, onde deu nas vistas por posições políticas. Tornou-se notado. E um dia foi convidado para candidato independente ao município funchalense — apoiado por umas até aí anémicas “forças de esquerda” – mas nesse dia talvez tenha saído a sorte grande aos socialistas locais.

Eleito em 2013, seria reeleito em 2017 com maioria absoluta. A performance é atribuída à “criação imediata de empatias” (onde investe tudo), ao ser “moderno”, a uma disponibilidade igual à ubiquidade: está ao mesmo tempo nas ruas, em eventos musicais, gastronómicos, sociais e artísticos; em arraiais, procissões, festivais, funerais. Está onde pode ser visto.

Confessando-se “ideologicamente muito perto do PS”, trabalha estreitamente com ele para quem já co- organizou uns “Estados Gerais abertos á sociedade civil”.

Acredita firmemente” numa política do diálogo constante, como expressão do exercício da cidadania”; quer “o cidadão no centro das suas preocupações e prioridades”; promete “maior aposta no desenvolvimento humano”; reivindica – quase como uma obsessão – a sua matriz “diferenciadora”. E agarra-se com unhas e dentes a um filão politico do qual reclama autoria, chamado “proximidade”. Indisfarçavelmente inspirada em Marcelo – mesmo que os seus genes tenham dado uma substancial ajuda –, a sua “proximidade” é cultivava á outrance, politique oblige.

Se o Governo e o Largo do Rato não largam este isco onde depositam todas as suas esperanças, convém também reparar no mérito deste aluno tão aplicado e (excessivamente?) seguro de si. E na sua boa cota parte de responsabilidade na aventura. Seria outra distração política imperdoável não o fazer.

Ao fim de 40 anos, um duelo que promete quase tudo.