1 Tem o desafio na voz, a pressa no corpo, a urgência na acção. Para o bem e para o mal faz política com vertigem: correndo, desafiando, decidindo, mandando. Intenso, instintivo, intuitivo, é um guerrilheiro. Capaz de impiedade e incapaz de desistência, aprecia-se sem modéstia e vive para o que sempre quis: a política. Preferindo ora a guerrilha, ora a governação; a confrontação ao diálogo, o mando ao consenso. O Presidente do Governo da Região da Madeira desliza sobre dossiers e questões sectoriais, o guerrilheiro combate até ao osso e o guerreiro repousa, sentando-se todos os dias ao piano quando chega a casa. Miguel Albuquerque, 61 anos, gosta de rosas – é com frequência convidado para integrar júris de concursos de rosas, orquídeas e por aí fora – e pratica a viagem com paixão. Agora foi o Presidente da República que lhe deu um bombom, convidando-o para o acompanhar ao 10 Junho a celebrar na África do Sul. O convidado irá: ah sim “estiveram zangados, já fizeram as pazes”. Ah bom? O que lá vai, lá vai.

Não sei se Miguel Albuquerque alguma vez terá o estatuto de personagem nacional mas já tem assinatura e deixará marca. Um bom princípio na política.

Conheceu a glória e a desglória, incensaram-no, difamaram-no, confiaram, desconfiaram, mas que importa? Contra ventos e marés Miguel Albuquerque, está. Pelo voto. E ao que dizem, continuará a estar. É certo que nunca como agora os ventos oposicionistas sopraram tão fracos, nem as marés da critica correram tão mansas (e longe vai o tempo em que Paulo Cafofo, liderando o PS da Madeira, quase lhe ganhou as últimas legislativas, mas Cafofo já não está).

2 É verdade, a vida sorri ao Presidente da Região Autónoma da Madeira. Ensinaram-nos que ” a sorte protege os audazes”, não sei se será o caso, é mais seguro falar de números. Venho do Funchal, ouvi gente, informei-me junto da oposição, falei com ex-governantes, conversei com o Presidente do Governo. Ninguém (me) torceu o nariz aos algarismos e estatísticas difundidas pela Quinta Vigia, sede do governo regional. De repente — surpresa – o pequeno arquipélago (e quantos milhares de continentais teimam ainda em não o descobrir, preferindo-lhe Cancun ou Varadero?) dá cartas no todo nacional: o flagelo da carga fiscal baixou para 29% do PIB (no continente está em 36%); a dívida, idem: (lá, 89%, aqui, 113%); a inflação também é menor lá que cá. O desemprego veio igualmente escada a baixo (nunca terão sido tão baixas as suas cifras), e last but not least, “quintuplicou a receita do volume de negócios”.

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3 Numa sala contígua ao seu gabinete, ouço Miguel Albuquerque regozijar-se com um outro número. Mais um. Subentendido claríssimo: é que muito mais que um número, trata-se de um feito. E razão maior para o regozijo, o número ilustra o acerto de uma promessa eleitoral onde se diluía um sonho (ou onde um sonho se transpunha para uma promessa política). Fosse o que fosse, era algo a que o então candidato á presidência do governo atendia com veemente empenho nas duas vezes em que concorreu às legislativas regionais: a diversificação da economia. Impedir que o arquipélago continuasse a viver “do” turismo e que os filhos e netos daquelas duas ilhas mantivessem como destino quase único servir á mesa ou ajudar nas cozinhas dos hotéis. Alguns anos depois, a aposta na área das Tecnologias e da Inovação traduz-se em milhões. “Não faltará muito tempo para que as receitas das Tecnológicas venham um dia a igualar as do Turismo.” Segundos depois, o entusiasmo do meu interlocutor voa célere sobre mais números:

“Em 2019 e 2022 os proveitos do Turismo foram de 528 milhões de euros. As empresas tecnológicas na Madeira já em 2021, facturaram 521 milhões, uma subida de 24% relativamente a 2020. Ainda não vieram os de 2022 mas… tudo indica que possam vir a ser superiores aos do Turismo.”

Num galope sobre factos e feitos, resultados e proveitos fico ainda a saber que “em 2021 havia já 419 empresas tecnológicas sediadas na Madeira.”

4 Não há bela sem senão? Há décadas que vou a Madeira, há décadas que escrevo sobre o que vejo, há décadas que no auge da governação de Alberto João Jardim ou que hoje na de Miguel Albuquerque, muita gente projecta a sombra das “construtoras”, do imobiliário, dos grupos hoteleiros, sobre o arquipélago. Que o mesmo é dizer a sombra do seu poder, sobre “o” poder; da sua influência sobre nomes, escolhas, decisões. Os próprios governantes – ontem Jardim, hoje, Albuquerque — sempre obviamente o negaram mesmo quando nos elencos governativos subitamente entrava – ou entra — A, saindo inesperadamente B. Uma valsa dançada por entre os remoques ressentidos das terras pequenas.

(Pequena nota não despicienda a propósito de elencos, porque as memórias são curtas: o que ninguém agradecerá suficientemente a Rui Gonçalves — hoje na Repper, em Bruxelas — foi o modo como o então Secretário das Finanças do primeiro governo de Miguel Albuquerque, lidou com o alçapão da divida herdada das anteriores governações: nunca deixando a Região cair no alçapão, restaurando a divida, as finanças, a saúde económica do arquipélago, e cumprindo sem falha nem atraso, o programa de austeridade exportado do continente para a Madeira.)

5 E Jardim? Jardim “não me pôde receber”. Ou não quis, mas a jornalista teria tido o maior interesse nisso. Permanecem por contar (e perceber) as suas relações com um sucessor — o único – que se atreveu a destroná-lo de um trono que ameaçava roçar a eternidade. Alberto João Jardim nunca poderá nem esquecer nem perdoar – não faz de resto nem uma coisa, nem outra, em vários modelos. Miguel Albuquerque, de outra geração, e outro tempo político, gere a herança conforme as circunstâncias e as conveniências. Actuando e intervindo com os instrumentos conferidos por uma visão política com outra escala, mais cosmopolita e ancorada no futuro; de vez em quando recorrendo ao mesmo tipo de procedimentos do populismo “jardinista”. (Mas talvez seja assim que se faça política. Ali, hoje.)

6 Conclusão deste ar atlântico político? Quem conclui é quem vota. Cabe-me tentar interpretar: se não pode deixar de ser perplexante e talvez mesmo “desistimulante” ter ininterruptamente há mais de quatro décadas a mesma laranja estampada sobre a Madeira e o Porto Santo, também se estranha que em mais dessas mesmíssimas quatro décadas ninguém – ninguém, repete-se – tenha sido capaz de trocar de lugar com o PSD. Não há “construtoras” que possam explicar a dimensão desta incapacidade.

7 Um acontecimento. Uma surpresa sem dimensão, sobretudo um privilégio para o país. O restauro — demorou mais de cinco anos – do Convento de Santa Clara no Funchal, tira a respiração. Um ar atlântico tão inspirado que quase nos transcende, nunca se sabendo que mais admirar, o que reter, para onde voltar a olhar. Para tudo, enfim, nesta felicíssima coabitação entre cinco séculos de arte e cultura através da qual se lê a história de Portugal e das suas sagas. Pintura, escultura, talha, azulejaria, prata, foram primorosamente restauradas. A recuperação coube à Insitu — o seu a seu dono –, tendo o Museu Nacional do Azulejo de Lisboa colaborado intensamente na recuperação e montagem de diversos painéis, centenas e centenas de azulejos, alguns raríssimos e compondo exemplares únicos no país; e o Laboratório José Figueiredo tendo também participado deste restauro com a qualidade que se lhe reconhece. O Convento é obviamente património do Estado português cabendo à Região a responsabilidade pela sua gerência. Ficou bem entregue. E Eduardo de Jesus, secretário Regional da Cultura e Turismo pode e deve agradecer aos deuses este reabrir de portas de Santa Clara: no exercício de um cargo governamental melhor seria muito difícil.

Mas como os últimos serão os primeiros, evoco — e aplaudo – o “primeiro” deste dia, Francisco Clode, director dos Serviços do Património Cultural. Há muito que lhe testemunho o ofício e lhe admiro o inesgotável saber. Cabe-lhe muitíssimo no gosto e no cuidado da ressurreição deste Convento. Cabe-lhe igualmente a forma tão sedutora como partilhou o seu saber na visita que guiou. E já agora, parece-me que caber-lhe em vida a honra de ter liderado este restauro, é capaz de relevar do milagre.

Inesquecível.

8 Segunda conclusão sob a forma de pergunta: porquê a Madeira no meio “disto tudo”? Porque há mais vida para além de Galamba. E mais país. Como o ar deste Atlântico português.

PS: No ultimo sábado o país recebeu um fortíssimo jacto político de um outsider que, embora  outsider, não se exime em acordar a pátria.  Desta vez, sem reservas e colocando todo o seu peso político e institucional naquele momento, Cavaco Silva utilizou-se a si mesmo, lembrando-nos como era: autoridade própria, sentido Estado, interesse nacional. Não foi porém o mais surpreendente antes a minúcia e o detalhe aplicados ao óbvio – aquilo a que os portugueses assistem diariamente — e como argumentar contra o óbvio? Cavaco Silva foi forte e preciso, concreto e directo. Só aliás a veracidade do diagnóstico explicará o desnorteado critério das reações socialistas e a falta de gosto no acinte: as oposições precipitaram-se no poço do seu próprio choque.

Uma chatice ouvir verdades como punhos de um ex-Chefe do Governo ex-Chefe de Estado, dono de 4 maiorias absolutas sem autorização do PS.

E ainda: quem ouviu, percebeu que no radar  de Cavaco estava também quem no PSD lhe mina afanosamente o caminho ou lhe monta as armadilhas. E claro, estava Belém (mas Belém não seria Belém se saísse dos radares).

Ou muito me engano ou poderá ser um exercício interessante verificar o número de vezes  que haveremos de nos lembrar desta invulgar intervenção política.