António Costa é vítima de si próprio, da sua falta de profissionalismo ou vontade de governar, do desrespeito pelas instituições e até pelas pessoas que dele discordavam ou até que o apoiaram, de tratar o país como se fosse seu, um país que se fosse mais consciente não lhe poderia perdoar a oportunidade que tem feito Portugal perder.
Aquilo a que temos assistido nestes últimos quase oito dias foi o modelo de governação destes anos a ser exposto a nu de forma dramática e muito prejudicial para todos nós. Que a governação estava em desequilíbrio já se tinha percebido, nunca se pensou que o colapso fosse tão estrondoso e com efeitos tão negativos e preocupantes.
Esperemos que se consiga levar o país até às eleições sem mais danos, embora face ao que se está a assistir pareça difícil. É preciso que todos se acalmem ou o Presidente da República, que tomou uma decisão que tenta, e bem, conciliar os interesses do país e minimizar os impactos políticos e económico-financeiros, terá de revisitar a sua escolha e antecipar as eleições e, como tal, a dissolução do Parlamento.
Como várias vezes se disse aqui, estávamos, e estamos, a desperdiçar uma conjuntura única. Uma maioria absoluta, com uma oposição quer à esquerda quer à direita fragilizada, as contas públicas recuperadas, recursos financeiros como nunca tivemos e um quadro económico e político global que cria uma oportunidade histórica para Portugal ser um dos grandes beneficiários das mudanças que se estão a desenhar por causa da transição energética que o clima está a impor, e depois das lições aprendidas com a pandemia e os dois conflitos que nos rodeiam. A re-inudustrialização da Europa, baseada nas energias renováveis, é uma tendência que tem condições para ser muito positiva para Portugal, saibamos nós aproveitá-la. E este caso, ao envolver negócios determinantes para as transições energética e digital, é também e especialmente grave por isso – mas já lá vamos.
O Governo mostrou-se incapaz, parecendo ter perdido a sua razão de ser quando deixou de ter a agenda da destruição – virar a página da austeridade e a culpa é do Passos – e teve de criar a sua própria agenda. Olhando hoje para trás, vemos que foram o Bloco de Esquerda e o PCP que dinamizaram a governação nos primeiros seis anos. E assim que existiu a maioria absoluta expôs-se o vazio e especialmente a displicência e ausência do primeiro-ministro.
Porque tudo o que se passou envolve várias vertentes vamos olhar para cinco grandes temas: a demissão de António Costa; a decisão do Presidente da República; as lições de António Costa no sábado e o investimento estrangeiro; o caso Centeno e o Futuro até 10 de Março.
A demissão. Só o primeiro-ministro pode acreditar, para se defender e alimentar a tendência de vitimização do PS, que se demitiu por causa do último parágrafo do comunicado da Procuradoria-Geral da República. Basta pensar na realidade alternativa, de esse parágrafo não existir, para percebermos que António Costa não tinha as mínimas condições para continuar a ser primeiro-ministro face à gravidade do que se passou.
O processo envolve o seu chefe de gabinete Vítor Escária, o seu “melhor amigo” agora transformado em “não tenho amigos” Diogo Lacerda Machado, os dois detidos; quatro investimentos em que direta ou indiretamente – nem que seja através da sua equipa – o primeiro-ministro esteve envolvido e suspeitas que recaem sobre o seu ministro das Infraestruturas – arguido e agora demissionário – e sobre o seu ex-ministro do Ambiente. Houve aquilo que nunca pensámos assistir depois de José Sócrates, buscas no palácio de São Bento – sim foi no gabinete de Vítor Escaria – e no Ministério do Ambiente, além de outros organismos do Estado, como a Agência Portuguesa do Ambiente. Foi encontrado dinheiro vivo no montante de 75.800 euros no gabinete ao lado do primeiro-ministro.
Como é que António Costa consegue imaginar que tinha condições para se manter como primeiro-ministro depois deste furacão é um mistério. O primeiro-ministro agora demissionário é o responsável máximo pela sua equipa, não pode escudar-se na culpa dos outros e ainda menos no Ministério Público.
E não, não há nenhuma perseguição aos políticos pura e simplesmente porque aquilo que já se sabe – e ainda é pouco – revela uma forma de actuar que não é digna de um país desenvolvido. Como não é digno não assumir as responsabilidades e procurar sempre fórmulas para culpar os outros. Tem sido essa a marca do PS quando olhamos para trás e pensamos nos casos Casa Pia e Sócrates. Se António Costa quer mostrar que é diferente, a sua melhor saída é assumir as responsabilidades de não ter conseguido governar e manter-se discreto nesta fase. O que não aconteceu.
A decisão do Presidente da República é a que melhor concilia os interesses do país, saibam os seus protagonistas comportar-se à altura dos problemas que enfrentamos.
Primeiro a decisão de aprovar o Orçamento. Admitindo que não se considere que o Orçamento está aprovado, como está na generalidade, claro que não havia problema nenhum em viver em duodécimos durante o primeiro semestre do próximo ano. A questão não é essa. O Orçamento para 2024 tem um conceito que, na sua ausência, seria muito prejudicial para as famílias mais desfavorecidas, uma vez que o Governo decidiu realizar os apoios através da despesa, tornando-os mais focados. O IVA zero, por exemplo vai acabar em Janeiro e, em sua substituição, foram reforçados e criados apoios dirigidos às pessoas com mais baixos rendimentos. Além disso, a decisão de aplicar a regra de actualização das rendas é acompanhada pelo reforço dos apoios às rendas. São dois exemplos de como deixar cair o Orçamento criava dificuldades a quem já tem uma vida difícil e não tem de pagar pelos comportamentos irresponsáveis e eventualmente criminosos de quem nos governa.
O que se espera agora é que o PS – que é quem tem a maioria – não use este tempo para aprovar medidas insustentáveis, caindo na tentação de usar o Orçamento como ferramenta de campanha eleitoral. O mesmo é válido para os outros partidos, especialmente para o PSD, já que, numa onda maquiavélica, pode ver as suas propostas aprovadas apenas porque são insustentáveis e terão depois de ser anuladas.
Em segundo lugar a data das eleições para 10 de Março e a dissolução do Parlamento a 15 de Janeiro. Para aprovar o Orçamento não era necessário tanto tempo. Mas a leitura que se pode fazer é que o Presidente, e bem, quis dar tempo para que a nova liderança do PS se organize e afirme. Não, isto não é preferir que o PS volte a ganhar as eleições, é defender um dos partidos estruturantes da nossa democracia, já que aparentemente os socialistas não têm sido capazes de o fazer.
É também uma oportunidade para que o PS faça aquilo que não fez após o caso Sócrates, que faça uma reflexão sobre as razões que o levam a ser o partido que tem às suas costas os casos de justiça mais graves da nossa democracia envolvendo políticos. E para refletir sobre a quem interessa e não interessa dar protagonismo no partido. Tudo isto sem se fazer de vítima e sem cair na tentação de considerar que tudo o que lhe acontece é culpa dos outros.
Claro que se correm riscos com esta decisão do Presidente, como aliás já se viu no que fez António Costa no sábado. Esperemos que tudo isso tenha sido ditado pela precipitação e que como diz Rui Tavares do Livre: “Estamos a viver tempos de alguma desorientação política, que conviria conter”. É preciso que todos se acalmem, a começar pelo primeiro-ministro, mas incluindo os líderes da oposição, para não piorarmos o que já é mau de mais. Já existem apelos, nomeadamente da Iniciativa Liberal, para que as eleições sejam antecipadas. Esperemos que não seja necessário.
A conferência de imprensa de António Costa no sábado. Quando pensamos que não é possível piorar, eis que piora. Continua a ser um mistério o que levou António Costa a fazer uma conferência de imprensa, depois de estar demissionário e apenas estar em funções porque o Presidente assim o decidiu, no palácio de São Bento com a sua mulher sentada no chão.
Foi para ensaiar a sua defesa e condicionar a justiça são as hipóteses mais plausíveis e que têm sido apontadas por vários analistas e comentadores. Mas além disso teve afirmações sobre duas pessoas próximas de si, o seu chefe de gabinete Vitor Escária e Diogo Lacerda Machado que foram, no mínimo, desumanas para quem estava preso desde terça-feira – iam cumprir a sua quarta noite detidos e Lacerda Machado estava a ser ouvido pelo juiz. Vale a pena ouvir o que disse António Lobo Xavier no programa Princípio da Incerteza da CNN Portugal.
Mas mesmo a defesa que António Costa ensaiou é lamentável por revelar que não tem consciência de que não governou para simplificar os procedimentos de que se queixou. E, mais grave, não percebeu que o grave foi a forma com os processos de autorização dos investimentos estavam a ser conduzidos.
Claro que há objetivos conflituantes quando tratamos de grandes investimentos, como disse António Costa, e todos sabemos. Mas a sua conciliação não se faz ameaçando um presidente de câmara, pressionando responsáveis do Governo ou da administração pública para não cumprirem a lei. Sentam-se todos à mesma mesa, com todas as entidades, respeitando as instituições e administração pública, e trabalha-se na conciliação dos objetivos ambientais e económicos, em vez de andar em telefonemas, encontros informais e pressões diversas. E faz-se tudo com a maior transparência, partilhando com os cidadãos o que se está a fazer e com o envolvimento do primeiro-ministro. Foi isso que não aconteceu e a responsabilidade maior é de António Costa.
Os investimentos em causa são extraordinariamente importantes para o futuro do país, por aquilo que se desenha que vai ser o mundo, digital e sem energia fóssil, e porque Portugal tem uma posição muito vantajosa para ganhar com esta nova economia. O hidrogénio, o lítio e os centros de dados são elementos importantíssimos neste novo mundo. E, para isso precisamos de investimento estrangeiro porque não temos capital suficiente nem conhecimento.
E não, não devemos considerar que os governos não se devem meter nestes assuntos. Todos os governos o fazem, hoje ainda mais do que no passado pelo peso que as políticas industriais ganharam no quadro europeu e até nos EUA, e seria uma irresponsabilidade Portugal não o fazer também. Foi assim que se conseguiu a Autoeuropa, com o Governo a envolver-se na altura até com apoios diretos. E não, se fosse hoje conseguia fazer-se o mesmo com um Governo que soubesse o que fazer num Estado de Direito, em vez de o querer atropelar ou fintar.
Antes, como agora, podem concretizar-se estes investimentos, volta a repetir-se, respeitando as regras, as instituições, as comunidades locais – no caso do lítio há queixas de que não eram sequer recebidos – e sem a mínima possibilidade de abrir espaço ao tráfico de influências ou à corrupção. A importância dos projetos exigia que o próprio primeiro-ministro se tivesse envolvido neles. Quem sabe não foi a sua ausência que criou espaço para parte do que se passou, revelando mais uma vez que António Costa se demitiu de governar e o seu espaço foi sendo ocupado.
O convite a Mário Centeno para liderar o Governo sem eleições antecipadas é outro dos mistérios das iniciativas recentes do primeiro-ministro, assim como a questão que fez de tornar isso público. Como disse Luís Mira Amaral na Rádio Observador, Centeno não tem culpa de ter sido sondado pelo primeiro-ministro. Mas isso levanta duas questões: primeiro, porque é que António Costa tomou essa iniciativa e, especialmente, porque quis sublinhá-la. E em segundo lugar porque não disse logo Mário Centeno que, como governador, não podia olhar para essa hipótese. Como já foi explicado, o caso Draghi em nada se compara com este, uma vez que já não era banqueiro central.
Mário Centeno já foi nomeado com dúvidas por ter saído diretamente de ministro das Finanças para o Banco de Portugal, recentemente fez um artigo de análise pessoal em que pode discutir-se a sua independência em relação ao Governo do PS e agora aceita envolver-se numa crise desta dimensão. Mais, como se tudo isto não bastasse, Mário Centeno resolve esclarecer a situação no Financial Times para se ver depois desmentido pelo Presidente da República e ter de voltar a esclarecer o assunto dizendo que afinal Marcelo Rebelo de Sousa não o convidou. Resultado: temos um governador com a imagem de mentir. Ou é a segunda versão do “erro de percepção mútuo” que também opôs Centeno ao Presidente, por causa da gestão escolhida para a CGD que acabou por cair.
Será que não chega estarmos nas notícias internacionais por causa de um eventual caso de corrupção envolvendo investimento direto estrangeiro para atearmos ainda mais fogueiras no Financial Times?
Mário Centeno foi pouco prudente e fragilizou, desnecessariamente, a sua posição no Banco de Portugal. Sim, sabemos que tem outras ambições, que o Banco de Portugal é pouco para si, mas hoje é governador e tem de ser e parecer independente. Instituições fortes e independentes, e Centeno sabe isso, estão fortemente correlacionadas com o crescimento e desenvolvimento. Sabemos que este PS que nos governa despreza a independência dos reguladores, mas ao que se saiba não é esse bem o caso de Centeno.
Quanto ao que levou António Costa a envolver Centeno, sabendo até que tinha havido um incidente com o Presidente, é um mistério. Talvez tenha usado a sua popularidade, como António Costa usa as pessoas, para deitar fora quando lhe convém. De qualquer forma, não é caso para se pedir a demissão, até porque não vale a pena acrescentar instabilidade à instabilidade. Mas o governador precisa de moderar as suas ambições e perceber porque lhe fez isto António Costa.
O futuro até 10 de Março e especialmente até à dissolução da Assembleia da República exige que todos tenham calma, do partido do poder aos da oposição, para não prejudicarem ainda mais o país. A primeira etapa é aprovar o Orçamento de forma responsável, concentrados no principal objetivo: apoiar as famílias que estão mais expostas à actual crise de subida dos preços e da habitação.
Depois é preciso que o primeiro-ministro se afaste do espaço público, percebendo que só ainda assume esse cargo por causa das contas públicas, mas e principalmente por causa do seu partido, para que o PS tenha tempo de se reorganizar. António Costa não pode cair na tentação de fazer outra conferência de imprensa como a de sábado. O país já foi suficientemente prejudicado na sua imagem externa e interna, na economia, mas também na confiança nas instituições e nos políticos.
Neste momento é preciso que todos se acalmem incluindo nos ataques à justiça e comecem a pensar nas estratégias de nos reconstruirmos e de não perdermos aqueles investimentos. Se nada disto acontecer, o Presidente terá mesmo de colocar a hipótese de antecipar as eleições.
António Costa só se pode queixar de si próprio, da displicência com que começou a governar em maioria absoluta, da sua ausência como primeiro-ministro líder de um governo e da desvalorização que foi fazendo do que se foi chamando “casos e casinhos”. Todos nos íamos apercebendo que o sistema de governação estava perigosamente em desequilíbrio. Nunca nos passou pela cabeça que o Governo iria implodir com consequências muito preocupantes na confiança dos cidadãos nos políticos e na capacidade de Portugal atrair investimento. Esperemos ter ainda tempo de recuperar, sem danos maiores para a democracia e para a economia.