A assimetria na avaliação da nossa classe política é uma realidade. Mas atingiu nestas últimas semanas patamares excepcionais. Não chega ser popular para ser um bom Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa corre o risco de ser classificado como um dos piores presidentes desta era, quando formos capazes de analisar friamente o que tem feito, quando formos capazes de despir a simpatia que nos inspira e a graça que lhe achamos, quando a elite for capaz de o avaliar friamente. Acrescentou, desnecessariamente, crise à crise política que estamos a viver, na sequência do chumbo da proposta de Orçamento do Estado. Tem feito interpretações da Constituição que chocam com o que dizem outros constitucionalistas. Colocou precipitadamente, na agenda pública, eleições antecipadas, transformando o chumbo do Orçamento no equivalente à aprovação de uma moção de censura ou reprovação de uma moção de confiança. E coloca o país, neste momento, perante a perspectiva de um resultado eleitoral em que será difícil a formação de um governo estável. Não tinha de ser assim.

Sim, é verdade que nunca tivemos a experiência do chumbo da proposta do Orçamento do Estado. Mas é difícil perceber que a nossa ordem constitucional veja no chumbo do Orçamento uma espécie de moção de (falta) de confiança no Governo. Sim, existia a possibilidade de se apresentar outra proposta de Orçamento do Estado, vivendo em duodécimos até lá. Não seria aprovado, era adiar a inevitável dissolução, pode argumentar-se. Também não tinha de ser assim e mesmo que o fosse existiam algumas vantagens.

O PCP tem defendido que as eleições não são inevitáveis, acusando o Presidente de ser um factor de instabilidade. É verdade que tal em nada mudava, até porque o PCP colocou, inesperadamente, em cima da mesa, e depois das eleições autárquicas, exigências que sabia à partida serem impossíveis de o PS atender. Mas teríamos uma segunda oportunidade, testando até a possibilidade de o Bloco de Esquerda mudar de opinião. No limite, António Costa podia dar o dito pelo não dito, quanto a precisar do PSD, e conversar com os sociais-democratas.

Tudo altamente improvável, dirão. Sim, sem dúvida. Mas fazer uma segunda tentativa permitia clarificar melhor a situação e a vontade das partes e, mais importante ainda, enfrentar o primeiro semestre de grande incerteza que vamos viver com um Governo e um Parlamento em funções. Assim, a partir da próxima semana, caso o Presidente opte pela dissolução do Parlamento, como disse antes do tempo, vamos entrar numa fase em que o Governo, embora mantendo a plenitude das suas competências, acaba por se ver limitado nos seus poderes no que diz respeito, nomeadamente, a iniciativas que sejam competência da Assembleia da República – ver aqui Vital Moreira.

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O presidente Jorge Sampaio, por exemplo, aceitou que Pedro Santana Lopes substituísse José Manuel Durão Barroso e só quando se tornou claro que não existiam condições de governabilidade é que, quatro meses depois, decidiu dissolver o Parlamento. Valia, pois, a pena que se tornasse mais claro que o Governo de António Costa deixou de ter condições para governar o País, independentemente de se concordar ou discordar das suas políticas. O resultado até podia ser o mesmo, como aliás defende Vital Moreia aqui e contrariando quer Miguel Prata Roque quer Camilo Lourenço. Argumenta, por exemplo, Vital Moreira que eleições o mais depressa possível resolviam já um problema que uma nova proposta de Orçamento apenas adiava – haveria sempre eleições, se não agora, mais tarde.

Sim, o mais provável é que um novo Orçamento esbarrasse de novo com um chumbo. Mas a grande vantagem era termos Governo e Parlamento pelo menos na fase do novo ano em que as principais nuvens que estão neste momento no horizonte se adensam sem que se saiba, neste momento, se vão deparecer sem causar problemas de maior. Imagine-se que a pandemia se agrava ou imagine-se que é preciso adoptar medidas para enfrentar os problemas de aprovisionamento que a economia já está a enfrentar ou ainda mais em relação à crise energética. O que faremos?

A par da instabilidade que vivemos na frente económica, temos a instabilidade em que estão o PSD e o CDS, sendo que pelo menos o PSD é um dos mais importantes partidos do regime. Paulo Portas na TVI explicou-nos bem a importância de ter partidos fundamentais também preparados para eleições, uma questão de qualidade da democracia. Sem a pressão a que estamos a assistir, qualquer um desses partidos tinha mais tempo para clarificar a sua liderança, sem que isso fosse um dano para os interesses do país. Pelo contrário, eleições mais tarde, como já referido, permitiam que tivéssemos um Governo em plenas funções, com o Parlamento a funcionar, numa fase que pode ser especialmente exigente em termos económicos e até de saúde pública.

Um outro argumento prende-se com a aplicação das verbas do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). O Governo sabe, tal como o Presidente da República, que não existe qualquer problema de execução financeira do PRR com o Orçamento em regime de duodécimos. São várias as razões: o PRR não tem comparticipação nacional e, por isso, não precisa dessa dotação no Orçamento; os tectos de despesa são suficientemente altos – por causa da pandemia em 2021 – para permitirem acomodar a despesa do PRR e, finalmente, mesmo que assim não fosse, a Lei de Enquadramento Orçamental permite que se realize despesa quando existem receitas próprias. O problema existe nos compromissos assumidos pelo Governo para garantir a nova transferência – que é semestral –, mas tal é matéria que pode ser negociada com a Comissão Europeia.

Mas imaginemos que é convicção do Presidente que, apesar dos riscos que enfrentamos em matéria económica, é preferível avançar já com eleições, como defende, por exemplo, Vital Moreira. Mesmo assim, devia ter evitado a pressão que fez junto dos partidos, esperando-se que não o tenha feito também aos deputados da Madeira. Além disso, durante o debate parlamentar da proposta de Orçamento, o Presidente esteve sempre bastante activo, chegando ao ponto de desfocar a atenção quando tornou público que tinha recebido o candidato à liderança do PSD, Paulo Rangel, apanhando completamente de surpresa Rui Rio. Claro que o Presidente pode receber quem quiser, mas pode também fazê-lo discretamente ou escolher um outro dia que não seja no primeiro dia do debate parlamentar da proposta de Orçamento do Estado.

Marcelo Rebelo de Sousa devia ainda ter evitado ameaçar o BE e o PCP com eleições, acabando por sair derrotado dessa contenda, para não falar das intervenções que disse publicamente que andou a fazer para que o Orçamento fosse aprovado. Mais ainda, podia ter evitado a imagem de passeio até ao Multibanco, logo após o chumbo da proposta de Orçamento, sabendo que os jornalistas estavam à porta de Belém.

Qualquer outro Presidente da nossa história não teria sido poupado a criticas, se tivesse feito metade do que Marcelo Rebelo de Sousa já fez (e não fez). Hoje, por exemplo, percebemos o valor que teve a exigência do ex-presidente Aníbal Cavaco Silva de ter um acordo escrito em 2015, valor que acabou até reconhecido por António Costa. Deveria Marcelo Rebelo de Sousa ter exigido o mesmo? Porque não o fez? E porque correu António Costa o risco de não aceitar pelo menos o apoio do Bloco de Esquerda? Como diz Teresa de Sousa, é muito provável que o BE se tenha irritado com isso – recordemos que antes das eleições anunciava que queria ir para o Governo – assim como deve ter avaliado mal, neste Orçamento para 22, a posição do PCP.

O Presidente da República tem sido excessivamente poupado à critica e tem-se dado ao luxo de fazer uma interpretação muito pessoal da Constituição – veja-se que falou de eleições sem cumprir os requisitos constitucionais, por exemplo. Qualquer outro Presidente, que não merecesse a simpatia da elite, estaria neste momento a ser severamente criticado. Nesta crise da aprovação do Orçamento, Marcelo Rebelo de Sousa tem sido um factor de instabilidade e tem andado a acrescentar crise à crise. Acaba por nos dizer que não há vida política para além do Orçamento. E o chumbo da proposta de Orçamento do Estado transformou-se no equivalente à aprovação de uma moção de censura ou chumbo de uma moção de confiança.