Moçambique vive uma das fases mais difíceis da sua vida colectiva. Por motivos diversos.
Como se não chegassem as sangrentas incursões armadas em Cabo Delgado e o flagelo dos raptos, temos agora uma gravíssima crise política, marcada pela violenta repressão policial dos protestos populares, legítimos e pacíficos, contra a fraude e a manipulação das eleições de 9 de outubro passado.
As fraudes eleitorais não são, infelizmente, novidade no país. Contudo, desta vez, foram ainda mais grosseiras. Ou mais denunciadas. O regime anunciou resultados que a Frelimo nunca antes tinha alcançado, como a alegada vitória em todas as províncias, com proporções de 80% para 20% em algumas.
Além do bloqueio à participação da CAD (partido que sustentava Venâncio Mondlane) nas legislativas, houve diversas irregularidades documentadas, começando pela própria organização dos cadernos de recenseamento. A missão de observação da União Europeia revelou que vários dos seus 179 observadores foram impedidos de acompanhar o processo em distritos, províncias e até a nível nacional. Qualquer semelhança com um escrutínio realmente democrático seria pura coincidência, se tivesse ocorrido. Mas nem isso ocorreu.
O desfasamento entre o poder político moçambicano – monopolizado há meio século pela Frelimo – e as aspirações da população do país, composta em larga maioria por jovens que não viveram o período colonial nem a devastadora guerra civil que durou década e meia, entre 1977 e 1992, tornou-se inegável.
A Frelimo, na prática, deixou de representar os moçambicanos. Tornou-se uma força de bloqueio dentro do próprio país, cultivando o nepotismo e a corrupção. Nada de surpreendente. É geralmente o que acontece nos países onde os partidos de regime se perpetuam sem fiscalização nem contraditório. Funcionam em circuito fechado. Tornam-se indiferentes às aspirações do povo. Tornam-se surdos à voz da rua.
Não custa perceber este divórcio entre a população e a casta dirigente de Maputo. As estatísticas são bem reveladoras dos contrastes entre uma elite que enriquece à custa de um povo que vive cada vez mais pobre e sem perspectivas de futuro. Apesar das suas imensas riquezas naturais, Moçambique figura em 185.º lugar entre 189 países no índice de desenvolvimento humano e na 107.ª posição, entre 127, no índice de fome global. Quase dois terços da população – 62,9% – vive abaixo do limiar da pobreza.
Tudo isto evidencia um facto que já nenhuma propaganda pró-governamental consegue encobrir. O povo moçambicano perdeu o medo. Protesta, reclama, exige, reivindica. Quer pão e água potável, quer paz e liberdade. Quer hospitais, escolas, estradas. Quer trabalho. Aspira a uma vida melhor, promessa que a Frelimo atraiçoou sujeitando o país a experiências devastadoras. Começando pelo regime marxista-leninista dos anos pós-independência, com os seus campos de “reeducação”, a supressão de vozes dissidentes e a destruição do tecido económico do país, e terminando, hoje, num capitalismo de Estado de que se serve para alimentar as suas clientelas.
Esta semente totalitária permanece hoje sob outras formas, mais refinadas, mas não menos inaceitáveis. Incluindo a instrumentalização das forças de segurança para silenciar protestos. E o recurso, em casos limite, ao assassínio político. Como se comprovou em Outubro, com as mortes violentas de Elvino Dias e Paulo Guambe, colaboradores muito próximos de Venâncio Mondlane, o principal candidato presidencial da oposição. Quando a força da razão está ausente, impera a razão da força. À lei da bala, se for preciso.
Cerca de três centenas de cidadãos moçambicanos perderam a vida nos recentes tumultos, em grande parte fomentados por grupos, infiltrados nos protestos, de desestabilizadores cúmplices do regime. Trezentas vidas perdidas em nome da liberdade. A situação agravou-se com a libertação de mais de mil indivíduos detidos em estabelecimentos prisionais, que ocorreu, segundo vários relatos, com a conivência ou até com o incentivo das autoridades.
As imagens dos subsequentes linchamentos de alguns desses reclusos, ao serem recapturados, são particularmente chocantes. Interrogam-nos até que ponto estamos perante uma regressão civilizacional. Como se o Estado de Direito, em Moçambique, tivesse rumado a parte incerta.
Todo o processo de sucessão do presidente cessante, Filipe Nyusi, para Daniel Chapo, o mais recente ungido do partido, está ferido de ilegitimidade. Merece firme condenação da comunidade internacional e o repúdio de todos os partidos políticos democráticos que em Portugal são solidários com o sofrimento dos moçambicanos. Partidos como a Iniciativa Liberal, que sempre rejeitou o chamado “realismo político” que leva alguns, por cá, a ter dois pesos e duas medidas. Condenam com vigor as fraudes eleitorais na Venezuela ou na Bielorrússia, enquanto fingem não reparar no que se passa em Moçambique.
Rejeitamos, em absoluto, esta duplicidade. Não podemos ser complacentes com as entorses à democracia nuns quadrantes enquanto as denunciamos noutros.
Venâncio Mondlane anunciou para esta quinta-feira, dia 9 de Janeiro, o seu regresso a Maputo. Mantendo-se coerente nos apelos com o princípio elementar que sempre defendeu: a mobilização em defesa dos direitos humanos por meios não violentos.
Ele diz “não” a esta partidocracia cleptocrata com coragem moral e desassombro cívico. Um “não” que implica também rejeitar os protestos violentos, muitos dos quais infiltrados por elementos provocadores vindos das fileiras governamentais. Venâncio sabe que a verdadeira transformação só pode acontecer por meios pacíficos. Já basta de cicatrizes no país, independente há meio século.
O desejo de mudança é hoje transversal na sociedade moçambicana. Do povo rural ao urbano, de gente todas as classes e sobretudo dos milhões de pobres, novos e velhos.
Os democratas devem exigir, sem ambiguidades, que Mondlane tenha condições de segurança neste regresso ao país natal. Nenhum outro cenário é tolerável.
Em circunstâncias normais, o candidato presidencial que o regime não quis reconhecer como vencedor estará envolto numa enorme massa humana mal aterre no aeroporto de Maputo. Por ser um sinal de esperança para Moçambique, o povo deve marcar presença, de forma ordeira e pacífica, para acolher aquele que tem dado voz à sua vontade generalizada de mudança.
Espero que a Frelimo tenha aprendido com os numerosos erros cometidos, abandonando de vez a via repressiva para tentar calar quem se atreve a contestá-la nas urnas e nas ruas.
Desejo muito que esta mobilização colectiva em torno de Venâncio Mondlane se transforme numa jornada cívica em defesa da verdade, da democracia e da liberdade. Pela justiça, contra a impunidade. Pelo progresso, contra a pobreza endémica. Por um futuro digno. Com esperança no povo moçambicano.