No próximo domingo, dia 30, vamos mais uma vez às urnas para eleger a assembleia legislativa, composta por aqueles que é suposto representarem a nação. É o órgão legislativo por excelência e como tal responsável perante a totalidade dos seus eleitores e concidadãos. As leis que de lá saem, depois de promulgadas pelo Chefe do Estado, condicionam muito o nosso viver quotidiano e dizem muito dos valores e princípios que norteiam não só os seus proponentes, redactores e aprovadores finais, mas também do tipo de sociedade que pretendem edificar.

Assim, conhecer mais profundamente o que pensa cada partido que se propõe a sufrágio e quem são e o que pensam os membros das respectivas listas constitui, só por si, uma imensa e hercúlea tarefa para a dimensão da qual muito poucos dos eleitores tem disponibilidade, tempo ou mesmo paciência. Imagine-se só o que é perscrutar mais de vinte programas partidários, com dezenas e dezenas de páginas; o que é tentar saber o que pensam centenas e centenas de candidatos a deputados; e no que respeita aos partidos que já se sentaram alguma vez no Palácio de São Bento, elencar o que já cumpriram ou não das promessas de anteriores campanhas.

A muitos chegará a avaliação da experiência histórica concreta dos partidos e das personalidades que alguma vez governaram para decidirem em quem votar novamente. Aos hesitantes resta a ocasional assistência ao vivo das diversas actividades de campanha, depois editadas a seu jeito pelos media; ou ouvir as entrevistas e debates televisivos, onde o tempo e mais ainda as palavras sempre voam, levadas pelos ventos de mudança. E ainda os comentários dos inúmeros influencers profissionais.

De facto, quanto aos indecisos, à medida que se aproxima o dia das eleições, vão afirmando a sua escolha, sendo que as sondagens cada vez mostram mais que é deles que muito depende para que lado cairá o prato esquerdo ou direito da balança.

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Uma outra dificuldade, apresentam as iniciativas legislativas fracturantes dos costumes e da sã moral que são ocultadas cobardemente em tempo de campanha e só depois das eleições são apresentadas, à revelia dos eleitores.

Há quem pense que os temas chamados fracturantes (aborto, procriação medicamente assistida, eutanásia, uniões do mesmo sexo, adopções, etc.) são unicamente matéria de consciência pessoal e por isso não faria sentido serem objecto de prévias decisões ou propostas programáticas dos partidos. Não concordo com esta posição, pois tais temas são dos mais (des)estruturantes da sociedade e, portanto, os mais definidores do carácter fundamental do ideário de um partido. Mas sendo, sem dúvida, também objecto do juízo de consciência pessoal de cada candidato, então seria mais transparente e demonstrativo de boa-fé se cada candidato dissesse antecipadamente o que pensa a respeito desses temas. E como encaram os candidatos a cancel culture, a ideologia de género ou o pensamento woke, importados nos últimos anos do mundo anglo-saxónico? Disso então, nem falam.

Em Maio de 2019, antes das eleições para o Parlamento Europeu e para a Assembleia da República, entenderam os bispos portugueses, através de uma carta pastoral conjunta (de 10 páginas), intitulada Um olhar sobre Portugal e a Europa à luz da doutrina social da Igreja, lembrar aos católicos como que os critérios de discernimento que os mesmos devem ter em conta ao fazerem a sua escolha partidária[i].

Perante as dificuldades a que me referi atrás, sempre será mais fácil rever os seguintes quatro pontos do documento da Conferência Episcopal Portuguesa, expostos à luz dos princípios da Doutrina Social da Igreja, e que se mantêm mais actuais que nunca; e assim verificar qual das propostas partidárias tem mais em conta os pontos de vista referidos pelo episcopado. Aqui vai então uma sumula dos quatro pontos ou partes:

1 Toda a vida humana tem igual valor

É sublinhada a dignidade humana de cada pessoa, irrepetível na sua unicidade. Dignidade que lhe é intrínseca simplesmente «pelo facto de ser um membro da espécie humana». Exige-se o dever de protecção dos mais vulneráveis (em todas as fases da vida desde a concepção à morte); e afirma-se que «o grau de humanidade de uma civilização se pode aferir pelo cuidado com que esta trata os seus elementos mais débeis».

Recordam depois os bispos nove circunstâncias em que se aplica e nas quais se estende o direito à vida, «o primeiro desses direitos»: na gestação («o embrião e o feto como “os mais pobres dos pobres”» e o apoio devido às grávidas); durante o crescimento (aqui recordam, em jeito de mea culpa solidário o lancinante tema do abuso sexual de menores e o cuidado sempre devido às crianças); na juventude (apelando a que se lancem à vida lutando pelo bem-comum); nas relações familiares (lamentam-se os castigos violentos infligidos às crianças e o drama da violência doméstica, que atinge sobretudo mulheres); com os idosos (o drama da solidão e o problema da inversão da pirâmide etária, com todos os problemas daí decorrentes); no fim da vida (reafirma-se a recusa moral da eutanásia, pois «atenta contra a inviolabilidade da vida humana» e alerta-se para «os desmandos decorrentes da chamada rampa deslizante»); no exercício da liberdade religiosa (alerta-se para a enganosa confusão da «sã laicidade com o laicismo hostil à religião» que pretende relegar a expressão religiosa unicamente «para espaços privados»); no contexto económico (são naturalmente referidos a pobreza, a exclusão social, o dever da economia estar ao serviço das pessoas, a recusa da «autonomia absoluta dos mercados», a questão dos despedimentos, os limites morais do lucro, a desumanidade dos baixos salários, a «vantagem de maior flexibilidade das relações laborais», a desejável estabilidade do emprego e a degradação dos serviços públicos); finalmente, na componente demográfica (reafirma-se que «a família nasce da aliança das dimensões masculina e feminina», sublinha-se a necessidade da «coesão familiar», afirma-se a urgência da «promoção da natalidade», e também as suas dificuldades como «a precaridade do trabalho» e o «acesso à habitação de jovens casais»).

2 O bem de todos e de cada um sem ser ditadura da maioria

Introduzindo este ponto, afirmam os bispos:

«O bem comum é o bem de todos e de cada um. Não é a soma de bens individuais; mas também não é o bem de um todo que se sobrepõe às partes; porque cada parte, cada pessoa, tem um valor por si mesma, é um “todo” por si mesma. Não é, por isso, o bem do “maior número” numa perspectiva utilitarista, de uma maioria que sacrifica bens fundamentais da minoria. A democracia, que supõe o respeito pela regra da maioria, não pode assentar no seu domínio absoluto. Se num país a classe média constitui a maioria da população e os pobres são minoria e não têm peso eleitoral decisivo, o bem comum exige que os direitos destes não sejam esquecidos ou menosprezados».

Seguem-se algumas considerações sobre a corrupção (a questão da fuga aos impostos «sendo justos», a transparência, alude-se à velha noção, tão portuguesa, da “cunha”); sobre os migrantes (a propósito, afirma-se a inaceitabilidade das «correntes inspiradas no “nacionalismo de exclusão”», cita-se o Papa Francisco, e referem-se algumas vantagens concretas verificadas então em Portugal com os imigrantes, não sem uma referência às atitudes que os governos e a sociedade devem exercer para com eles, única maneira de «termos migrações seguras, ordenadas e regulares»); por fim sobre a unidade da Europa (afirma-se que para promover um sentimento de pertença «não se podem esquecer as raízes cristãs da cultura europeia, não tanto como relíquia do passado, mas como património vivo que pode dar frutos no presente», não deixando os bispos de advertir logo de imediato que a mensagem cristã é incompatível com a atitude de «excluir da Europa pessoas de outras culturas e religiões». Aproveitam os prelados para advertir sobre «o crescente nacionalismo autoritário ou populista, acompanhados da generalização do discurso xenófobo» sem especificarem. No final desta parte, lê-se uma breve referência ao «islamofobismo» (sic) e aos atentados que «as próprias comunidades cristãs e os seus templos têm sido vitimas»).

3 Cuidar da casa comum

Abre este ponto, que novamente se debruça sobre alguns aspectos económicos, uma citação da encíclica Sollicitudo rei socialis de São João Paulo II:

«A solidariedade é também uma verdadeira e própria virtude moral, não um sentimento de compaixão vaga ou de enternecimento superficial pelos males sofridos por tantas pessoas próximas ou distantes. Pelo contrário, é a determinação firme e perseverante de se empenhar pelo bem comum; ou seja, pelo bem de todos e de cada um, porque todos nós somos verdadeiramente responsáveis por todos» (n. 38).

No que respeita aos bens universais e ao direito à propriedade, reafirma-se com clareza a doutrina clássica de que «o destino universal dos bens deve articular-se com o direito à propriedade privada. É uma garantia da autonomia pessoal e familiar, um prolongamento da liberdade humana e uma condição das liberdades civis. Estimula a responsabilidade, a criatividade e a laboriosidade. Todos devem ser, nalguma medida, proprietários. Mas entre o destino universal dos bens e a propriedade privada, é o primeiro desses princípios que deve prevalecer. A propriedade tem uma função social». Depois, é abordada a questão da distribuição de rendimentos (defendem os bispos que «entre os factores que explicam tão forte desigualdade estão as distorções do sistema fiscal: evasão, “paraísos fiscais”, reduzida tributação dos rendimentos de capitais face aos rendimentos do trabalho»); e ainda, no contexto da solidariedade, é referido o cuidado da criação(ecologia integral, incluindo a ecologia social e as alterações climáticas).

4 Nem Estado centralizador, nem Estado mínimo

Depois de recordar o princípio da subsidiariedade, afirma consequentemente o documento: «Contraria-se assim a concepção de um Estado omnipresente, monopolista e centralizador, que suprime a liberdade e a consequente responsabilidade das pessoas e dos grupos sociais. Mas contradiz-se igualmente a concepção liberal de um Estado mínimo. Estado supletivo, ou subsidiário, não omisso ou indiferente, mas que regula as iniciativas da sociedade civil em função do bem comum, apoia-as quando o bem comum o exige e supre as suas insuficiências também quando o bem comum o exige».

No que respeita à garantia da liberdade de educação e de saúde, defende-se que «o Estado deve apoiar o ensino não estatal. Trata-se de respeitar a liberdade de aprender e de ensinar consignada na Constituição, a liberdade de escolha dos pais, que, de acordo com a Declaração Universal dos Direitos Humanos (artigo 26º, n.º 3), têm a prioridade na escolha do tipo de educação dos filhos». Quanto à garantia da Saúde, afirma-se que o Serviço Nacional de Saúde deve «ser salvaguardado e melhorado, o que não impede, antes se conjuga com iniciativas particulares e sociais, comprovadamente úteis, necessárias e eficazes». A propósito das chamadas IPSSs, cita-se a encíclica Deus caritas est de Bento XVI: «Um Estado, que queira prover a tudo e tudo açambarque, torna-se no fim de contas uma instância burocrática, que não pode assegurar o essencial de que o homem sofredor – todo o homem – tem necessidade: a amorosa dedicação pessoal. Não precisamos de um Estado que regule e domine tudo […]» (n. 28). E os bispos não deixam de alertar para a difícil situação financeira que particularmente então atravessavam aquelas instituições de solidariedade social.

A concluir a carta pastoral, escreviam os nossos bispos: «Com esta reflexão orientada pelos grandes princípios da doutrina social da Igreja, queremos contribuir para um melhor discernimento sobre as realidades do nosso País […], numa altura em que somos chamados a participar através do voto em eleições […] nacionais, visando a construção de uma sociedade mais justa e fraterna».

Se a política consiste na gestão do poder e na realização do possível em benefício do bem-comum, não me será difícil concluir que não há partidos perfeitos; e ainda menos partidos perfeitamente católicos. Mas se não há certamente programas nem partidos nem líderes perfeitos, sempre encontramos entre os lotes partidários a sufragar quem pareça estar assumidamente mais próximo.

Que os católicos portugueses estejam atentos e votem esclarecidos, procurando formar rectamente a sua consciência. Não sejam indiferentes aos principais valores morais estruturantes da sociedade acima recordados e que são, para os católicos, absolutamente inegociáveis! A economia não é tudo; para isso temos já muitos partidos de ideário marxista que em coerência com a sua ideologia lhe dão a primazia absoluta.

Termino com uma questão que os senhores bispos jamais poderão colocar naturalmente em público: não remete a referida reflexão do episcopado português tão claramente para a corajosa campanha do líder de um dos partidos fundadores do actual regime que as sondagens sistematicamente votam à irrelevância senão mesmo à extinção?

De facto, olhando para as recentes sondagens, há votos que podem parecer inúteis; mas poderão revelar-se, surpreendentemente, muitíssimo úteis para possibilitar e influenciar decisivamente a governação e o rumo da sociedade que desejamos legar aos nossos descendentes.