O radicalismo que se vive nos Estados Unidos tem de ser para nós uma aprendizagem. Para evitarmos cometer os mesmos erros, imitando o que de pior tem a América. Joe Biden vai tentar unir. Esperemos que consiga.
A Europa está longe de ser os Estados Unidos, Portugal ainda menos, e ainda bem. Mas nos últimos tempos assistimos a uma tendência para replicar aqui o que de pior veio ao de cima na sociedade norte-americana com Donald Trump. É preciso aproveitar este tempo para perceber o que levou Donald Trump a merecer tantos votos, quem são e o que leva as pessoas a votarem numa pessoa com aquelas características, que divide em vez de unir, que agrava problemas como o racismo em vez de os tentar resolver.
Têm existido diversos trabalhos que tentam perceber porque votam cada vez mais pessoas em partidos xenófobos e racistas, partidos que negam a liberdade individual de se ser quem se quer ser. Um deles é o livro “The Lonely Century: Coming Together in a World that’s Pulling Apart” de Noreena Hertz que escreve um artigo muito interessante no Financial Times (aqui só para assinantes – não li ainda o livro, li o artigo). A solidão, o isolamento é identificado como uma das principais causas do crescimento do populismo em linha com o que já tinha sido referido por Hannah Arendt. A experiência com ratos que, mantidos em solidão, atacam o visitante, tem sido igualmente referido como fundamentando a tese do peso da solidão no crescimento da intolerância. Se esta tese estiver correcta, o distanciamento físico que temos de ter para combater a pandemia alimenta ainda mais a intolerância que já se vinha instalando na sociedade.
Ligado ou não à solidão há um segundo aspecto que pode igualmente estar a contribuir para a intolerância: o esquecimento a que foi votada a classe média trabalhadora onde se integra também o grupo dos deserdados pela globalização. Foi para estas pessoas que Donald Trump falou, como foram estes eleitores que deram a vitória ao Brexit. Regra geral pessoas que vivem em ambientes menos urbanos e em zonas onde indústria decaiu ao ritmo da crescente globalização. Classe trabalhadora de baixos salários que foi esquecida pelos políticos, mais preocupados com os pobres e desempregados ou com os ricos.
Nos Estados Unidos temos ainda o problema grave e sistémico do racismo, como podemos por exemplo perceber neste trabalho da revista The Economist, em que as famílias negras que se mudam para bairros de brancos vão preventivamente à esquadra da polícia mostrar as fotografias dos filhos. Com estes exemplos cai a hipótese de estarmos perante discriminação social, estamos perante racismo, com os outros a pressuporem comportamentos por causa da cor da pele.
No caso do racismo estamos longe de ser assim em Portugal e é um erro importar linearmente os movimentos norte-americanos para aqui. Temos problemas para resolver? Sem dúvida. Temos de pensar porque é que a ascensão social é, em Portugal, tão difícil. Quem nasce pobre, seja branco seja de outras cores, dificilmente sai da pobreza. E os que conseguem ascender, muito poucos, são em regra ostracizados pelas elites urbanas. A forma como foram tratados Aníbal Cavaco Silva – apesar das suas duas maiorias absolutas e duas vitórias em presidenciais –, assim como Pedro Passos Coelho, com exemplos de assimetria de avaliações para comportamentos ou decisões semelhantes, mostra-nos bem como temos em Portugal uma elite que funciona como um cartel. Também José Sócrates, com todos os seus erros, foi apanhado por esta discriminação.
Mas o problema mais grave é aquele que ainda vamos a tempo de corrigir, evitando também nós ter, a prazo, um Donald Trump. Temos, urgentemente de pensar em políticas que sejam amigas da classe média. Quando os partidos mais populistas criticam os apoios sociais, podem ter a certeza que são ouvidos com atenção pela classe média trabalhadora de baixos salários e pelos pensionistas que “descontaram uma vida” e sentem que as suas reformas não reflectem isso. Quando nesta pandemia assistimos a criticas sobre a forma como o Governo não contou com o sector privado na saúde, podemos ter a certeza que a classe média trabalhadora os está a ouvir, já que muitos deles ou têm seguros ou são funcionários públicos com acesso ao privado por via da ADSE. Não se pense que são só os ricos que consomem os serviços de saúde privado, também são, mas não são eles que fazem mexer o ponteiro.
As preocupações que o Governo tem vindo a mostrar, por exemplo, com a construção de habitação para a classe média vão no bom sentido, na linha do que temos de fazer para que a classe média não se sinta cada vez mais esmagada por impostos que não percebe para que servem, se tem de ter um seguro de saúde, não consegue uma casa como gostaria e, frequentemente, tem de optar pela escola privada para os filhos.
Claro que os mais pobres dos pobres têm de ter políticas de apoio. Mas não nos podemos esquecer da classe média trabalhadora de baixos salários se queremos evitar que Portugal vote também no seu Donald Trump. Os sinais de radicalismo já os vemos, nomeadamente nas redes sociais. Pode ser apenas isso, mas podemos também já não ir a tempo de transformar a raiva em tolerância, o desafio enorme que Joe Biden tem agora pela frente. Vale mais prevenir do que remediar e, para isso, é preciso voltar mais as políticas públicas para quem trabalha.