Corria o mês de Novembro de 2016. Estava, como sempre, de livro aberto.
Estava, como sempre, literal e figurativamente nas nuvens, a várias dezenas de milhares de metros de altitude voando sobre o Golfo Pérsico. Lia, como sempre, ávida e sofregamente. Tinha entre as mãos uma compilação de ensaios de João Lobo Antunes intitulada “Memórias de Nova Iorque e Outros Ensaios”, cuja deleitosa leitura estava prestes a terminar. Sobre a mesa portátil repousava um outro livro da autoria do seu irmão, Nuno Lobo Antunes, intitulado “Sinto Muito”.

Devorei, ao longo das múltiplas horas de viagem, todos os capítulos, todos os parágrafos, todas as frases e todas as letras de cada tomo. Sempre fui um leitor compulsivo, é um traço comportamental incorrigível.

Sobressaíram, por entre a espessura de ambas as obras, referências esparsas, porém particularmente ricas e explícitas a um componente complexo do nosso métier: a comunicação, à distância, de péssimas notícias.

Não resisti e, como é meu hábito, rabisquei no meu caderno de apontamentos, que recorrentemente abro e folheio aleatoriamente no meu quotidiano sempre que o tenho comigo, a seguinte passagem de uma breve crónica intitulada “O Mensageiro” incluída no livro de Nuno Lobo Antunes:

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“Quantas vezes me interroguei sobre o falhanço dessa ligação, sobre a melhor maneira de comunicar, com verdade, o desmoronar de um sonho, a derrocada da fantasia, a morte por tempo incerto da alegria de viver. Não há maneiras boas de dizer coisas más, mas há maneiras melhores que outras. Quando era interno de Neurologia de adultos, fui muitas vezes obrigado a anunciar, pelo telefone e a altas horas da madrugada, a morte de alguém: “Minha Senhora, fala o Dr. Antunes, Columbia-Presbyterian Medical Center, lamento informá-la de que o seu marido morreu…” Seguia-se uma pausa, segundos que eram séculos, e o sussurrar de um grito “oh my God!”, a que invariavelmente se seguia, “Thank You Doctor!”. Obrigado. Porquê? A não ser por cumprir o dever profissional de mergulhar na noite, ligado por misterioso elo de dor e simpatia a quem não conhecia, quem não iria conhecer, e com quem partilhava talvez o momento mais dramático da sua vida. A voz da tragédia era simultaneamente a única em quem naquele momento se podia também sentir o calor da fraternidade, da empatia, da humanidade. Thank You Doctor. Obrigado a si por não me ter apontado o falhanço da cura, responsabilizado pelo derrubar da esperança, odiado por trazer, pegada a mim, a má notícia. Doutor, partilhamos ambos o desespero da impotência, por isso lhe agradeço.”

Corria o mês de Junho de 2017. Estava, como sempre, prestes a iniciar o meu dia de madrugada. Eram sete e meia da manhã de dia seis de Junho, uma segunda-feira.
O meu avô estava internado no serviço de Pneumologia do Hospital de Santa Maria desde a sexta-feira passada. Eu estava plenamente consciente do quão reservado o prognóstico era, e mentalizado de qual seria o desfecho mais provável a breve trecho.

O telefone do meu pai tocou às oito horas em ponto. Sabia o que, muito provavelmente, seria dito do outro lado da linha. Preparado? Nunca. Nunca se está preparado.

“Lamento informá-lo, mas o estado de saúde do seu pai evoluiu desfavoravelmente no decorrer da madrugada de hoje. Infelizmente, apesar dos nossos esforços, faleceu às quatro horas e quarenta minutos da manhã. Em meu nome e em nome de toda a equipa médica, de enfermagem e de auxiliares de acção médica os meus sentimentos.”

Corre o mês de Março de 2020. Estou, como sempre, compenetrado no melhor cumprimento daquilo que me compete.

Verifico a presença de pupilas midriáticas bilateralmente. Faço incidir o foco luminoso que brota da lanterna em ambos os globos oculares. Reflexos fotomotores directo e consensual ausentes bilateralmente. Desligo a lanterna premindo o botão existente no cabo da mesma. Digo, em voz baixa para mim próprio, na penumbra da enfermaria agora apenas iluminada pela luz fosforescente lunar: “Pupilas midriáticas e não reactivas”.

Encosto o estetoscópio ao tórax e verifico a ausência de sons cardíacos. Apenas ouço a respiração estrepitosa do doente do leito vizinho.

Encosto a polpa dos meus dedos à superfície gélida da pele, agora pálida como mármore, da região cervical em busca de pulso carotídeo. Em vão, nada vibra debaixo das minhas falanges.

Afasto-me do leito, olho através da porta entreaberta para o relógio de parede do corredor, verifico as horas e registo-as mentalmente.

Verifico e certifico o óbito em plataforma própria e preparo toda a documentação como manda o preceito e a lei portuguesa.

A noite prossegue, negra como breu, preenchida pelos gritos e apelos dos aflitos e pelos roncos dos consolados nos quartos das enfermarias.

São oito da manhã. Consulto o processo da doente falecida, e obtenho o número de contacto do familiar de referência. Antes mesmo de discar o código que conduzirá a minha chamada até à telefonista do hospital penso: “Aqui estou eu do outro lado. Hoje sou eu o mensageiro das más notícias. Sou eu o responsável pela melhor maneira de comunicar, com verdade, o desmoronar de um sonho, a derrocada da fantasia, a morte por tempo incerto da alegria de viver. Está na hora de mergulhar na noite, ligado por um misterioso elo de dor e simpatia a quem não conheço, quem não irei conhecer, e com quem irei partilhar, talvez, o momento mais dramático da sua vida.”

Disco o código, peço à telefonista para, por favor, me fazer uma chamada para o exterior e aguardo que me atendam.

Ouço, por fim, uma voz ensonada e rouca do outro lado da linha. Penso em nós, há três anos atrás, antes de avançar, firme, sem hesitações:

“Bom dia, o meu nome é Miguel Esperança Martins, médico do Hospital de Santa Maria, em Lisboa. Lamento contactá-la a uma hora tão madrugadora. Temo não ter boas notícias para lhe dar. O estado clínico da sua mãe deteriorou-se progressivamente ao longo da madrugada de hoje. Apesar de todos os esforços que envidámos ao longo dos últimos dias, infelizmente a sua mãe faleceu às cinco horas e cinquenta minutos da manhã. Quero dar-lhe, em meu nome, em nome de toda a restante equipa médica, equipa de enfermagem e equipa de auxiliares operacionais, os meus sentimentos.”

Do outro lado um grito doloroso, um choro breve, abafado por uma exclamação: “Meu Deus…”.

E depois, uma única frase: “Muito obrigado Doutor…”.

E eu penso: Obrigado a si por não me ter apontado o falhanço da cura, responsabilizado pelo derrubar da esperança, odiado por trazer, pegada a mim, a má notícia.

Pouso o auscultador no descanso.

Preparo-me para ir buscar os meus pertences ao cacifo e para, enfim, pousar, literal e figurativamente, também o estetoscópio. Ao cruzar os sectores do serviço, abrindo fechando portas recito mentalmente o velho poema de Dylan Thomas:

“Do not go gentle into that good night 
Rage, rage against the dying of the light”.