Um sono curto passado, e acordaremos eternamente. E a morte não o será mais, a morte morrerá
John Donne

No passado dia 15 de março, na sequência do pedido de fiscalização preventiva apresentado pelo Presidente da República, o Tribunal Constitucional pronunciou-se, por maioria, pela inconstitucionalidade do Decreto da Assembleia da República que prevê a morte medicamente assistida.

No seu pedido, Marcelo Rebelo de Sousa suscitou dúvidas de constitucionalidade quanto ao caráter excessivamente indeterminado dos conceitos de sofrimento intolerável e de lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico. O TC considerou, no tocante à segunda dúvida, que “o conceito de lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico, pela sua imprecisão, não permite, ainda que considerado o contexto normativo em que se insere, delimitar, com o indispensável rigor, as situações da vida em que pode ser aplicado”, tendo sido esse o motivo central que determinou a decisão de inconstitucionalidade.

A decisão proferida é, a meu ver, relevante, não tanto pela devolução que se faz à Assembleia da República do diploma, que terá agora a possibilidade de melhor delimitar aquilo que os juízes do Palácio Ratton e o Presidente da República consideraram ser, excessivamente indeterminado, mas pelas considerações feitas a propósito de uma questão que, não tendo sido colocada no pedido de fiscalização preventiva, o TC ainda assim considerou ser de apreciar.

Assim, o Tribunal apreciou e concluiu que noção de inviolabilidade da vida humana consagrada na Constituição não constitui um obstáculo inultrapassável a uma norma que admita a antecipação da morte medicamente assistida, em determinadas condições, afirmando expressamente que “o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias”. Para a maioria dos juízes do Tribunal, “a conceção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico, que é aquela que a Constituição da República Portuguesa acolhe, legitima que a tensão entre o dever de proteção da vida e o respeito da autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento possa ser resolvida por via de opções político-legislativas feitas pelos representantes do povo democraticamente eleitos como a da antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa (…)”. A meu ver, a partir duma premissa que o Presidente da República não questionou, o Tribunal optou por desenhar, no Acórdão, as diretrizes e balizas que o legislador deverá seguir, caso pretenda aprovar uma lei que mereça o beneplácito do atual colégio de juízes, a saber, “um sistema legal de proteção que salvaguarde em termos materiais e procedimentais os direitos fundamentais em causa, nomeadamente o direito à vida e a autonomia pessoal de quem pede a antecipação da sua morte e de quem nela colabora (…) em condições (…) claras, precisas, antecipáveis e controláveis”.

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Ainda que para mim seja um mistério como se vai conseguir criar um sistema legal cujas condições materiais e procedimentais sejam claras, precisas, antecipáveis e controláveis e, pese embora a legislação sobre a morte medicamente assistida tenha, por esta vez, sido adiada, só por manifesta inépcia por parte da Assembleia da República ela deixará de ser aprovada na atual legislatura, dado o sinal claro que o TC emitiu, sem que isso lhe tenha sido questionado, de que, e repito, “o direito a viver não pode transfigurar-se num dever de viver em quaisquer circunstâncias”, podendo o direito à vida ceder à autonomia pessoal.

O debate sobre a eutanásia é, antes de mais, cultural, e só depois, e em consequência, jurídico e político. Ora, no plano cultural, há muito que era óbvio que a defesa intransigente da inviolabilidade da vida humana havia perdido acolhimento numa larga maioria da população, e que a eutanásia se tornaria inevitável, como peça fundamental que é, de afirmação de uma certa mundividência que há muito travestiu a liberdade, reduzindo-a, apenas, a uma mera expressão da vontade e da autonomia pessoais. A perda civilizacional é evidente, pois numa conceção liberal, clássica e humanista, a liberdade não é uma mera manifestação de vontade, é uma forma de arbítrio, sim, mas também uma decisão vinculada a um conjunto de valores fundamentais. A liberdade é um juízo individual, sim, para a sua realização plena, obedece por isso ao respeito pela autonomia, pela propriedade, pelo respeito por valores religiosos, humanistas e cívicos, mas acarreta, também, um sentido de responsabilidade e uma vinculação que não pode ser reduzida, apenas, à ideia de autonomia pessoal.

Debater a eutanásia de uma forma panfletária, ou seguindo um guião ou uma cartilha, é algo que não me entusiasma. Por isso, não encontrarão neste texto frases eloquentes sobre o tema, nem respostas translúcidas para um dilema que é íntimo, de humanidade, e que se coloca no epílogo da vida. Com total honestidade, não tenho orgulho na minha posição, nem um libelo acusatório para quem sobre este tema pense diferente.

Da minha parte, espero ter sempre força e ânimo para que a doença não me vença, ser capaz de dar sentido à dor e ao sofrimento, para nunca desejar a morte. Espero que quando os meus olhos se apaguem possa ver uma luz na escuridão e sentir o calor de uma mão amiga, familiar, de alguém que me ame. Espero, nas minhas limitações físicas, ouvir ao longe um eco ensurdecedor de todos os que me rodeiam. Espero morrer fisicamente esvaziado, mas com o coração cheio de amor.

Tenho medo que a hora da minha morte seja precedida de um hiato silencioso, suspensa por um derradeiro ato burocrático, em que pessoas que me desconhecem procurem avaliar na minha fragilidade se ainda existe uma réstia de discernimento e capacidade para que eu possa decidir o meu caminho. Tenho medo de morrer desejando a morte, aguardando a minha viagem final um salvo-conduto, cheio de carimbos e autorizações. Assusta-me pensar que posso vir a morrer sozinho, com as mãos vazias e geladas, desejando uma injeção que me alivie a dor de me ter tornado dispensável, e não amado. Espero que não me falte a força de espírito para querer viver, e não desejar que a minha morte seja acelerada por um ato de amor.

No contexto cultural e social em que vivemos, os valores dominantes estão alinhados para valorizar a recusa do sofrimento e o arbítrio da pessoa sobre a sua vida e o seu corpo. Acresce que a eutanásia e outras fórmulas de morte assistida ou facilitada serão a solução fácil para dar resposta a múltiplas circunstâncias às quais socialmente, e por falência, não vamos conseguir atender. Mesmo muitos dos que hoje têm medo da morte ou a recusam, serão empurrados pelas circunstâncias para uma lenta e solitária decadência física, com falta de cuidados, progressiva ou até abruptamente abandonados à sua sorte, pelos seus. A eutanásia e outras fórmulas de morte assistida ou facilitada são hoje genuinamente vistas por muitos como expressões de livre arbítrio e, até, de misericórdia e generosidade; ora, estes sentimentos e convicções convenientemente acalmarão, no contexto das vidas de hoje, as consciências dos saudáveis, cegando voluntariamente a burocratização da morte. Se a vida – e todas as suas incidências – se tornou apenas num direito e não numa responsabilidade que nos vincula a todos, como aliás o TC expressamente afirmou, porque não associar a liberdade a um redentor sopro de morte?

Importa, por isso, e no atual engano em curso, deixar bem claro: a possibilidade que, muito em breve, nos vai ser oferecida, de por manifestação de vontade, pedirmos que nos ponham termo à vida, não é uma expressão da liberdade. A realização plena da pessoa humana só ocorre num ambiente onde estejam salvaguardados elementos essenciais. Ora, a opção de permitir que alguém peça a eutanásia, num contexto de abandono, pobreza, e falta de cuidados, empurrado para a desesperança, é um atentado à liberdade, ainda que o próprio deseje, na sua fragilidade final, a morte.

O mundo que favorece a afirmação da eutanásia enquanto valor e enquanto expediente há muito que está a ser construído. Quem hoje a recusa, já só apenas resiste, pois pouco tem a propor a uma maioria que não compreende a sua linguagem. A inversão do retrocesso civilizacional em que vivemos, e que se manifesta numa sociedade que valoriza a destruição gradual da pessoa e da sua individualidade, capturado por identidades artificiais e projetos sem vida e sem esperança,  convida-nos a sair da nossa zona de conforto, a saltar os muros do isolamento, e a procurar, sem saudosismos, e fugindo do conforto das frases feitas das soluções do passado, respostas para os problemas do nosso tempo. Há uma nova linguagem que importa construir, que motive as futuras gerações para sair das Trevas em que já estamos mergulhados. Até lá, resta-nos a dignidade de morrer de pé, como as árvores, firmes nas nossas raízes, esperando que a natureza se renove, afirmando um novo tempo.