1. Ainda a manhã ia cedo e já não sabia onde pôr os pés, as multidões ululavam em todas as direcções, o calor era selvático. Tudo exigia um combate corpo a corpo com tudo. A surpresa foi devastadora: aquilo era Florença? Era. Capturada.
E agora? Ficar ou fugir? Insistir ou desistir? Aguentar ou chorar sobre tanto leite derramado
2. Florença capturada. Erro meu que não previ a dimensão do flagelo, partindo na primavera para lá, sozinha e com admirável ligeireza.
Flagelo e cerco: por todo o lado, gente e mais gente, turistas arrastando malas ruidosamente pelo empedrado do chão, turistas de muletas, turistas em cadeira de rodas, carabinieri fumando, carteiristas, angariadores de restaurantes, sem abrigos, devoradores de gelados, famílias com crianças de três, quatro anos, pela mão, bebés (já desidratados?) entalados em mochilas presas às costas cansadas dos progenitores, alunos em fila saindo de museus, italianos falando alto, fala-se sempre alto em Itália. Bicicletas, como gatos silenciosos, deslizavam-me felinas pela perna que não cabia nos acanhados passeios, buzinas de toda a sorte de veículos azoinavam espíritos e mentes, filas de “follow-me” tudo entupiam, seguindo a bandeirola de um guia esbaforidamente suado; dezenas de barracas oferecendo assustadora quinquilharia e duvidoso artesanato, logo comprados pelas hordas do ocupante, tudo enfim compunha um quadro desoladoramente feio.
E era isto de sol a sol.
Tornando operacionalmente impossível o júbilo do regresso a uma das mais belas cidades do mundo. O ver ou rever; a descoberta, a pausa solitária entre duas telas, dois altares, dois frescos, duas esquinas.
3. Tornando sobretudo impossível o que está para “lá”. O mais recôndito e mais escondido do génio. O que nos reclama um silêncio recolhido para se deixar desvendar. Para se dar a ver ao olhar mais deslumbradamente atento ou à observação mais rendida e que é o insondável mistério da criação. O dom da beleza. O toque da graça, o sopro do transcendente, o sorriso de Deus.
Tudo isso Florença respira, de tudo isso Florença nos fala, tudo isso ela nos oferece. (Ou oferecia?)
4. Em plena catástrofe lembrei-me de um texto que lera há tempos no suplemento “Babelia” (El Pais) onde se dava conta de ensaios recentes de antropólogos, filósofos, arquitectos, sobre “modelos de cidade” e concretamente sobre o lugar do espaço público nas grandes urbes. Esse “lugar que reflecte a convivência e o conflito, onde se faz história e onde às vezes se planifica, outras se improvisa” (boa definição).
Conhecemos cidades hoje de tal modo feridas de morte pela indústria turística que um dos autores destes ensaios ousava concordar com o economista Alfredo Acosta na sua comparação entre colonialismo e turismo: “tal como o colonialismo, o turismo produz dependência económica ao centrar toda a actividade numa única fonte de receita, gera riqueza rápida e pobreza a longo prazo, não calcula o valor do que destrói, cria “zonas de excepção” jurídica e urbana e acaba com a diversidade social.” Comparação deslocada? Relida agora e aqui, talvez. Vivida porém há três meses “in loco” e ao vivo em Florença e depois em Roma, quem sabe se não teria assinado por baixo uma comparação com a qual discordo? Seja como for estamos a anos luz de poder compreender – na pele da nossa vida quotidiana – a dimensão e a natureza transtornante desta massificação turística. Basta pensar – e eis um mero exemplo – no que será a tentativa normal de um cidadão florentino para conhecer ou rever os Uffizzi. Não consegue: estão sob ocupação estrangeira. Se “leigamente” me surge como quase impossível (e quem sabe se a realidade não virá provar um dia ser mesmo impossível) solucionar, debelar ou sequer domesticar esta cavalgada selvagem, não deixo de estranhar que a questão não seja objecto de muito maior ponderação. E de uma aflição que ultrapasse medidas pontuais ou frágeis panaceias. Como parece. Qualquer dia Veneza será afogada pelos turistas, Barcelona fechará as portas, o Monte de São Michel soçobrará de vez na subida da maré turística, Roma sucumbirá. E Florença talvez já tenha sucumbido sem que ainda não se tenha dado totalmente por isso.
5. Por isso um dia agarrei nas pernas e parti à procura de “outra” Florença. Menos sitiada e por isso mais amável. Encontrei-a pela mão do meu generoso (e sábio!) amigo Anisio Franco, conservador do Museu de Arte Antiga. Antes de partir pedira-lhe um papelinho com lugares escondidos dos predadores.
Anisio conhece-os e eu fui. Fui pela Capela Brancacci, no convento de Santa Maria del Carmine, do outro lado do Arno. Fica numa praça branca, havia pouca gente e corria uma brisa. Dentro do convento, na capela Brancacci, doze telas de Masaccio, Masolino e Filippino Lippi oferecem-nos o inicio do Renascimento na pintura. Glorioso e inesquecível. Se eu pudesse não teria saído de lá.
Fui por outra pequena capela, na Igreja de Santa Felicita, logo após passar a ponte Vecchio. Multidões na travessia da ponte, poucos mortais diante da capela Barbadori – Capponi onde é preciso pôr uma moeda para ter acesso ao paraíso: num relâmpago celestial, jorra diante dos nossos olhos incrédulos, o relevo admirável da pintura de Pontorrno (1494-1557) um génio maneirista da escola de Florença.
Fui pelos Jardins dei Boboli e nunca será de mais louvar o doce, delicado efeito de um jardim sobre alguém com os olhos turvados pelo deslumbramento.
Procurei a desoras a Santíssima Anunciata e a Santa Crocce e subi até San Miniato al Monte. Havia autocarros e filas de gente, mas fiquei com os ciprestes do caminho, a luz fulgurante do princípio da tarde, a geometria clara da quase inteira Florença que daquela colina se pode alcançar. E, claro, com a capela do cardeal português D. Jaime (1433-1459), entrevista na penumbra deserta do convento beneditino de San Miniato. Jaime, de extraordinária e brevíssima vida (morreu em Florença aos vinte a cinco anos), era neto de D. João I e filho de D. Pedro, o mais viajado dos príncipes da ínclita geração. Tinha, em suma, a quem sair brilhante.
6. E a verdade é que me valeram também os próprios florentinos. O riso aberto e o verbo sonoro quando finalmente as multidões recolhiam aos seus dormitórios e a cidade se humanizava, tornando possível a circulação da vida. Era quando a noite se deixava cair na doçura quente da primavera e começava a festa, a deles: nas ruas, nos passeios, nos bairros onde os moradores se entretinham ao relento com o jogo da bisca ou da bola; nos restaurantes onde a pizza e a pasta se saboreavam sempre em voz audível; nos terrraços, onde se discutiam as coisas da vida e o vinho escorria sem pressa (e felizmente também com fartura).
Ah Itália, “segunda pátria de toda a gente” na mais feliz das expressões que conheço para definir este país tão, tão abençoado pelos deuses (mesmo que agora pareça que eles se distraíram a tomar conta dele.)