Volto ao tema das Comunidades Intermunicipais (CIM), num momento crucial para as políticas de coesão territorial, agora que se preparam dois grandes programas para a próxima década, o programa de resiliência e recuperação económica (PRRE) e o quadro financeiro plurianual (QFP). A minha pergunta de partida é, aparentemente, simples: agora que se inicia mais um período de programação e utilização de fundos europeus qual é a configuração que queremos dar às atuais comunidades intermunicipais (CIM), um simples secretariado executivo, uma genuína comunidade intermunicipal ou uma autarquia do 2º grau? Façamos, então, uma breve revisitação pelo tema.
1 O atual enquadramento normativo
As CIM foram instituídas pela lei nº75/2013 de 23 de setembro que estabelece o regime jurídico das autarquias locais. As entidades intermunicipais CIM estão consagradas no Título III onde se estabelecem as atribuições das CIM (artigo 81º). O regime jurídico da transferência de competências do Estado para as entidades intermunicipais é atualizado pela lei nº50/2018 de 16 de agosto onde se estabelece, designadamente no artigo 30º do capítulo III o elenco das novas competências intermunicipais e, muito em especial, aquelas que se referem à gestão de projetos financiados por fundos europeus e à gestão de programas de captação de investimento.
Nestes dois domínios em particular, o DL nº 102/2018 de 29 de novembro estabelece a forma concreta de transferência de competências para as CIM. Pela sua amplitude e alcance o exercício desta competência será fundamental para a década que se avizinha. Neste DL pode ler-se:
“As entidades intermunicipais passarão a ter competência para, designadamente, elaborar, em articulação com as opções de desenvolvimento a nível regional, a estratégia global das respetivas sub-regiões, elaborar o programa de ação para a prossecução dessa estratégia e definir, implementar e monitorizar programas de captação de investimento, de dimensão sub-regional, articulado com a referida estratégia, bem como gerir e implementar projetos financiados com fundos europeus.
Salienta-se, igualmente, o papel mais ativo que é atribuído às entidades intermunicipais na dinamização e promoção, a nível nacional e internacional, do potencial económico das respetivas sub-regiões, bem como no acesso a programas de financiamento europeu, tendo em vista a implementação de projetos a nível sub-regional.” Por isso, eu pergunto, qual é a forma mais inteligente de lidar com esta competência das CIM?
2 O enquadramento político das CIM para a próxima década
Vejamos, agora, a questão pela sua perspetiva política. A minha primeira constatação é a forte bipolarização político-partidária entre centralistas e localistas. Esta bipolarização não deixa muita margem de manobra para o grupo dos regionalistas e menos ainda para os subregionalistas e intermunicipalistas.
A minha segunda constatação é que a Lei nº75/2013 e depois a Lei nº50/2018 foram, na prática, um duro golpe para os regionalistas portugueses, tornando-os, praticamente, dissidentes dos dois primeiros grupos. Digamos, de forma benigna, que a regionalização administrativa foi substituída pelo “diálogo regional” entre a administração central e a administração local, realizado por interpostas entidades, a saber, as CIM e as CCDR. E, assim, o poder político permanece lá onde sempre esteve, nos municípios e na capital. Ou seja, tudo como dantes, não obstante essa “sofisticação” político-partidária que é a eleição indireta do presidente da CCDR.
A minha terceira constatação é a de que não haverá muitas condições para grandes aventuras político-administrativas, sejam regiões administrativas ou autarquias de 2º grau nas CIM, mas, talvez, uma margem de progresso apreciável para “soluções colaborativas inovadoras” que, nesta altura, nem sequer imaginamos e que cabem na grande transformação digital que está em curso. Ou seja, apesar de ser uma abordagem conservadora do problema, o “diálogo regional” entre as CIM e as CCDR pode ser, assim, a grande novidade da próxima década se, para tanto, existirem estruturas de missão permanentes e competentes que tornem eficaz e efetivo esse diálogo, aquilo que eu aqui designo como a região-cidade e o ator-rede de uma CIM.
3 CIM, em busca de mais inteligência coletiva territorial
As minhas dúvidas, porém, residem nas qualidades de um “diálogo regional” entre duas estruturas burocráticas, um secretariado executivo e uma comissão de coordenação. Com efeito, elas são certamente competentes para promover o investimento público sub-regional e intermunicipal, mas não têm muita vocação para promover o investimento privado e as novas soluções associadas aos ambientes inteligentes e a transformação digital. Quer dizer, precisamos de ir em busca de mais inteligência coletiva territorial.
Se fizermos uma interpretação e aplicação compreensivas das atribuições constantes do artigo 30º da Lei nº 50/2018 e das competências concretas do DL nº102/2018 podemos imaginar, por exemplo, uma comunidade intermunicipal (CIM) capaz de congregar e animar as redes de investigação e desenvolvimento, as redes de cooperação empresarial, as redes de inovação social, as redes amigas do ambiente, as redes das artes e cultura e, num país tão pequeno como o nosso, usar o potencial colaborativo que essas redes podem estabelecer entre si e com as comunidades vizinhas.
Penso, por exemplo, nas quatro CIM do Alentejo – a CIM do Alto Alentejo, com 120 mil habitantes e 15 municípios, a CIM do Alentejo Central com 170 mil habitantes e 14 municípios, a CIM do Baixo Alentejo com 127 mil habitantes e 13 municípios, a CIM do Alentejo Litoral com 95 mil habitantes e 5 municípios – e imagino que cada uma delas pode ser uma “região-cidade” dotada de uma plataforma colaborativa de smart region e de um hub tecnológico para start up e ações coletivas inovadoras e todas elas interagindo por via de uma meta-plataforma regional de coordenação E porquê?
Porque sem inteligência coletiva territorial uma CIM nunca será uma genuína comunidade de autogoverno será, antes, um fruto da necessidade e/ou do acaso. Sem inteligência coletiva territorial, emocional e racional, uma CIM dificilmente será um território politicamente relevante, uma região-cidade e um ator-rede capazes de ações coletivas inovadoras.
Sabemos como as cidades inteligentes estão na ordem do dia. Atualmente, prevalece a versão tecnológica e gestionária de smart city que inclui a infraestruturação digital, as redes integradas de energia, a gestão de bairros inteligentes, a mobilidade urbana, a administração em linha, as plataformas urbanas e a sua interoperabilidade, a recolha e tratamento de dados e, finalmente, a segurança dos cidadãos. Nesta abordagem mais tecnológica a inteligência urbana incide, em geral, sobre três blocos de medidas: a virtualização de serviços convencionais numa ótica vertical de serviço-utente, a criação de plataformas digitais made in numa perspetiva mais horizontal e colaborativa e, por fim, uma lógica mais uberizada feita de sistemas SIG/GPS e inúmeros aplicativos.
Ora, na “região-cidade” das CIM do Alentejo fica claro que vai uma longa distância entre a simples provisão inteligente de serviços públicos de uma smart city e a criação de uma plataforma de conhecimento integrada numa estratégia de desenvolvimento territorial mais compreensiva e dilatada no tempo, como deve ser próprio de uma região-cidade de baixa densidade. O planeamento territorial da região-cidade não só considera a arquitetura biofísica dos sistemas naturais e seminaturais e as infraestruturas ecológicas indispensáveis à sustentabilidade do espaço como vai buscar inspiração na “teoria dos bens comuns” onde é decisivo o contributo das redes de conhecimento e o papel do ator-rede na convergência dessas redes. Estou a falar das redes de ciência e investigação, de cooperação empresarial, de inovação social, das redes amigas do ambiente e das redes de artes e cultura, que se podem constituir em plataformas colaborativas muito eficazes no planeamento e desenvolvimento de territórios inteligentes e criativos.
Notas Finais
As CIM e as regiões-cidades do futuro, pela sua natureza reticular, circular e colaborativa, estarão obrigadas, em primeira mão, a reduzir os custos de contexto e a gerar os benefícios de contexto necessários para um saudável desenvolvimento de todas as suas parcelas de território. Estou a falar de sinais distintivos e recursos como amenidades e zonas de recreio e lazer, estações e campos arqueológicos, terroirs em zonas de produção DOP/IGP, bosquetes multifuncionais e parques naturais e geoparques, zonas de intervenção agroflorestal, áreas de cooperação agrícola, áreas com endemismos florísticos e faunísticos, áreas de paisagem com valor histórico-literário, entre muitos outros motivos que podem ser mobilizados para efeitos de aproveitamento agroambiental e visitação turística.
No modo convencional de organizar o território os cidadãos iam ter com os serviços que estavam fisicamente estabelecidos nos locais de residência de acordo com uma certa geografia urbana. No modo digital, e em muitos casos, são os serviços que vêm ter connosco, em linha e no terminal do nosso smartphone. A transição digital vai revolucionar a dimensão espaço-tempo e a mobilidade do território da região-cidade do futuro. Por isso, a região-cidade da CIM precisará de um ator-rede que saiba ler os sinais do seu tempo: as diversas modalidades de agricultura de precisão, o planeamento urbanístico da smart city, as plataformas e os serviços públicos em linha, a mobilidade autónoma, o ensino e trabalho à distância, a internet dos objetos, os interfaces de realidade aumentada e virtual, as redes sociais, a vigilância eletrónica, etc.. Se não ficarmos “confinados digitalmente”, tudo se encaminha para uma nova dimensão espaço-tempo, com mais campo na cidade e mais cidade no campo. Com menos distância e mais tempo livre (intermitente), teremos, finalmente, um horizonte mais largo e promissor à nossa frente.
Termino como comecei. As minhas dúvidas, residem nas qualidades de um “diálogo regional” entre duas estruturas político-burocráticas, um secretariado executivo com vocação intermunicipal e uma comissão de coordenação com vocação regional cujo presidente vai ser eleito já esta semana por um colégio eleitoral restrito composto por eleitos municipais. Os dois eleitos indiretos – o presidente da CIM e o presidente da CCDR — são certamente competentes para promover o investimento público sub-regional e intermunicipal, mas não têm muita autoridade política para mobilizar o investimento privado empresarial e as novas soluções associadas aos ambientes inteligentes e a transformação digital. Quer dizer, precisamos de mais inteligência política antes de ir em busca de mais inteligência coletiva territorial.