1 É um clássico sempre que se fala da óbvia ineficiência do sistema penal português em lidar com a criminalidade económico-financeira e se apontam as manobras dilatórias das defesas como uma das suas evidentes causas. Logo se levantam os senhores advogados com os braços no ar a brandirem as suas tradicionais exclamações retóricas contra quem quer colocar em causa o status quo. E pior: contra quem ousa (suprema blasfémia!) colocar em causa o melhor e o mais avançado processo penal da Europa (e do Mundo). O português, claro!

O novo alvo é o dr. Henrique Araújo, presidente do Supremo Tribunal de Justiça, e o pensamento que explicitou na entrevista exclusiva que concedeu ao Observador. Mas será que é assim? Será que há fundamento para os senhores advogados rasgarem as vestes em público em nome de uma alegada defesa do Estado de Direito, como se o líder do poder judicial não soubesse o que isso é?

Vamos ser diretos e sintéticos:

  • A Justiça penal padece de uma iniquidade que tem de ser resolvida urgentemente: a enorme diferença na velocidade do trânsito em julgado de um caso de criminalidade comum (rápida e dentro dos padrões europeus) e um caso de criminalidade económico-financeira (muito lenta e própria de um país de terceiro mundo);
  • As causas dessa enorme lentidão são variadas mas, entre as mesmas, estão indiscutivelmente os inúmeros expedientes que a lei permite às defesas para protelarem o avanço de um determinado processo:
  • O próprio acesso a tais instrumentos de defesa depende exclusivamente da capacidade económica do arguido, o que faz com que os mais ricos tenham toda a capacidade do mundo para adiarem o trânsito em julgado em busca de prescrições e os mais pobres não tenham fundos suficientes para usufruir dessas vantagens que a lei confere a todos os cidadãos. Para um sistema que está perto de ser uma utópica perfeição, não poderia haver desigualdade maior.

Fundamentando cada um destes pontos.

2Segundo o último relatório da Comissão Europeia para a Eficiência da Justiça (dados de 2018), os tempos médios de resolução da justiça penal em Portugal estão dentro da média europeia: 1.ª instância (204 dias), 2. ª instância (121 dias) e 3.ª instância (58 dias). O que significa pouco mais de um ano até ao trânsito em julgado.

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Se formos comparar estes dados claramente positivos com o trânsito em julgados de alguns dos processos económico-financeiros (e outros igualmente mediáticos) dos último 20 anos, concluímos muito facilmente que a diferença é abissal. Ora vejamos:

  • Caso Isaltino Morais: inquérito iniciou-se em 2002 com acusação em 2006, julgamento começou em março de 2009 e acabou em agosto de 2009 mas o processo só transitou em julgado a 24 de maio de 2014. Tempo de resolução: 11 anos.
  • Caso BPN: inquérito iniciou em 2008, julgamento começou em dezembro de 2010 e terminou em maio de 2017 (6 anos e 5 meses). Oliveira Costa, o principal arguido, morreu em março de 2020. E só em março de 2021 é que os autos começaram a transitar em julgado para alguns arguidos. Tempo de resolução: 13 anos
  • Caso BCP: investigação começou em setembro de 2007, a acusação foi deduzida em janeiro de 2009, a condenação de Jardim Gonçalves e outros administradores do BCP surgiu em maio de 2014, tendo a Relação de Lisboa confirmado em fevereiro de 2015, não tendo ocorrido mais recursos. Tempo de resolução: 8 anos
  • Caso Face Oculta: inquérito iniciou-se em 2009, julgamento decorreu entre novembro de 2011 e setembro de 2014 e o processo ainda não transitou em julgado para o principal arguido Manuel Godinho. Tempo de resolução (até agora): 12 anos, com a ressalva de que Armando Vara começou a cumprir pena de prisão em janeiro de 2019 (10 anos até ao trânsito em julgado) e Paulo Penedos e Paiva Nunes em dezembro de 2020 (11 anos até ao trânsito em julgado).
  • Caso BPP: Há quatro processos iniciados após 2008, não tendo ainda nenhum transitado em julgado. O que está mais perto de ficar concluído teve acusação em junho de 2014, condenação a penas de prisão efetivas em julho de 2020 pela Relação de Lisboa, confirmação pelo Supremo Tribunal de Justiça em janeiro de 2021. Tempo de resolução (até agora): 13 anos
  • Caso Casa Pia: inquérito iniciou-se em novembro de 2002, julgamento começou em novembro de 2004 e acabou em setembro de 2010. O trânsito em julgado só aconteceu em abril de 2013. Tempo de resolução: 11 anos.

3 A diferença do tempo de resolução de um processo de criminalidade comum e destes processos que acabamos de referir é de 1 para 10. Quais são as causas para essa diferença abissal? Eis algumas explicações:

  • As fases de julgamento e dos recursos chegam a valer mais de 80% do tempo total do processo. Porquê? Porque muitos daqueles processos tiveram muitas testemunhas, o que faz arrastar o tempo do julgamento. Exemplos: caso BPN (mais de 300 testemunhas para um julgamento que durou 6 anos e 5 meses), Face Oculta (julgamento demorou 2 anos e 10 meses para mais de 350 testemunhas) ou a Casa Pia (Julgamento demorou cinco anos e 10 meses para ouvir mais de 600 testemunhas);
  • Após uma condenação em primeira instância, os recursos e respetivas manobras dilatórias nos tribunais superiores podem ir até onde a imaginação de um advogado o deixar. Além do recurso propriamente dito, as defesas podiam pedir aclarações aos relatores, apresentar reclamações para a conferência e ainda arguir nulidades. Todas essas manobras atrasam a tramitação entre tribunais superiores.
  • Sendo que os recursos propriamente ditos podem iniciar-se ainda na fase de inquérito, o que ajuda a emperrar os autos. Um exemplo prático: a defesa de António Mexia e João Manso Neto já apresentou inúmeros recursos no caso EDP e o processo ainda não teve acusação.

Tal não significa que o Ministério Público esteja ilibado na tramitação lenta de outros processos. Além de casos como o do Universo Espírito Santo, Parcerias Público Privadas e EDP — casos em que a investigação esteve ou está acima dos 5 anos. Também há problemas na investigação — muito por falta de meios — e isso também tem de ser encarado de frente.

4 Nenhum cidadão comum consegue compreender como é possível que o ‘zé ninguém’ que é arguido por homicídio seja investigado, acusado, pronunciado e condenado ou absolvido com trânsito em julgado em 1 ano. E o arguido poderoso com bons advogados só tenha a mesma sorte ao fim de 10 anos.

Principalmente, quando alguns desses arguidos são suspeitos de terem prejudicado o erário público (quando se tratam de ex-responsáveis políticos) ou de terem prejudicado milhares de consumidores (quando se trata de ex-banqueiros).

É por isso que este é um dos principais problemas da democracia portuguesa neste momento. Porquê? Porque explica uma parte importante do crescimento de fenómenos como o Chega mas também porque está posta em causa a confiança que os cidadãos têm de ter nas instituições democráticas.

E é por isso que as reações de muitos advogados, nomeadamente da do bastonário Luís Menezes Leitão, à entrevista do presidente do Supremo Tribunal de Justiça assemelha-se muito à da avestruz que prefere enterrar bem fundo a sua cabeça debaixo da areia, em vez de encarar a realidade de frente.

5 Na verdade, que Estado de Direito é este em que os arguidos mantém-se como suspeitos durante 10 ou até mesmo 15 anos? Será que os senhores advogados não percebem que a celeridade é também fundamental para que os arguidos encerrem um assunto que é naturalmente traumatizante e arrumem a sua vida quer como inocentes, quer como culpados?

Dito de outra forma: que Estado de Direito é este em que o acesso à Justiça e a todos os instrumentos legais previstos para o exercício das garantias de defesa se faz consoante o tamanho da bolsa do arguido? Quem tem mais rendimentos, conseguirá empurrar com a barriga o trânsito em julgado até a uma eventual prescrição e quem tem menos começa a cumprir pena de prisão praticamente a seguir à sentença em primeira instância. É isto que é um Estado de Direito?

Para serem parte de uma solução para tornar o sistema penal português mais equilibrado entre as garantias de defesa e a eficiência da Justiça, é fundamental que os senhores advogados deixem o seu corporativismo de lado. Porque só assim será possível encontrar um denominador mínimo comum entre a comunidade jurídica na procura da melhoria do nosso sistema penal. Em vez de insistirem na defesa de um nacionalismo judiciário oco e sem qualquer adesão à realidade.

Continua na próxima semana