Na noite do próximo dia 26 de Setembro, na tradicional festa de vitória do Partido Socialista no Altis, António Costa seguirá com atenção as votações em todo o país. Todavia, nesse dia decorrerá outro acto eleitoral que determinará, em grande medida, o destino do PS e de Portugal: as eleições federais na Alemanha. Estou certo que António Costa e os seus seguidores estarão com atenção à eleição de quem vai, pelo menos nos próximos anos, pagar a festa socialista.
Dezasseis anos depois de chegar ao poder, em 2005, depois de assassinar politicamente o seu padrinho político, chegará ao fim o consulado de Angela Merkel. A sua longevidade é tão impressionante que há hoje uma geração na Alemanha que chegou à idade adulta sem qualquer memória de outro chanceler. Merkel acompanhou as estonteantes mudanças na política internacional desde o início do século: a paranoia securitária do pós-11 de Setembro e o caos do Iraque, a crise financeira de 2008, a crise das dívidas soberanas, a crise dos refugiados em 2015 e, por último, a pandemia de Covid-19. Ao longo deste tempo, Merkel foi sempre o bastião de estabilidade e de lucidez, dentro e fora da Alemanha.
Externamente, a sua persona foi mudando radicalmente ao longo dos anos. No pico da dívida soberana era apresentada – de forma risível, de resto – como a reencarnação nazi de conquista europeia através dos mercados financeiros. Em 2015-2016, com a crise dos refugiados, a eleição de Trump e o Brexit, Merkel passou a ser vista como a representante das democracias liberais sóbrias, abertas e cosmopolitas. Na verdade, em minha opinião, Merkel nunca mudou de lugar. Esteve sempre no centro moderado e civilizado. O mundo à sua volta é que se alterou radicalmente.
As eleições que agora se avizinham anunciam o ocaso da dominação da CDU/CSU, apesar de haver uma forte possibilidade de esta permanecer no governo. Os sociais-democratas (SPD) prefiguram-se como os grandes vencedores e conseguirão garantir o lugar de chanceler para Olaf Scholz. Necessitarão, porém, não só dos Verdes, mas também da própria CDU/CSU como parceiros de coligação. Na Alemanha, ao contrário de Portugal, há um acordo claro entre as elites para manter os extremos políticos fora do poder. A extrema-direita da AfD e a extrema-esquerda herdeira dos comunistas da Alemanha de Leste, o Die Linke, estão vetados do acesso ao poder por uma cerca sanitária clara que ninguém ultrapassará. É pena que o Dr. Costa tenha quebrado igual cerca sanitária ao trazer Bloco de Esquerda e Partido Comunista. Seria mais fácil exigir ao PSD igualmente tratamento à extrema-direita do Chega se o PS continuasse a manter a distância higiénica mínima que o Dr. Soares bem construiu nos idos de 70. Isso, porém, são contas de outro rosário.
O compromisso europeu manter-se-á com a chegada do novo governo em Berlim. No entanto, internamente, a Alemanha encontra-se presa em forças contraditórias, que poderão ter consequências europeias. Por um lado, há uma elite política e económica que quer voltar às regras do Pacto de Estabilidade e Crescimento já em 2023. Os recentes números da inflação, num máximo histórico de 3%, dão algum poder a esta facção. Para além disso, é preciso relembrar a quem espera em Portugal que a pandemia tenha sido o momento de viragem final na política alemã para uma posição mais benévola em relação aos países cujo modelo de desenvolvimento simplesmente falhou, que, a prazo, os votantes alemães nunca aceitarão fazer transferências a fundo perdido. Vivi e trabalhei na Alemanha durante três anos, entre 2014 e 2017, no pináculo da crise grega e dos refugiados, e lembro-me bem como a elite universitária recordava bem as palavras de Kohl, no início da década de 90, quando a Alemanha aceitou as condições de Mitterrand de utilizar o marco alemão como moeda de troca para a reunificação. A condição central continua, e está, de resto, plasmada nos tratados: a Alemanha nunca pagará as dívidas dos outros.
Existe, porém, outra facção dentro da política alemã, porventura mais benévola para o Sul da Europa. Essa facção defende o fim da constitucionalização dos limites à dívida e pretende, acima de tudo, realizar grandes investimentos públicos para levar a economia alemã ao próximo grande salto tecnológico. A Alemanha precisa urgentemente de grandes investimentos para melhorar as suas infraestruturas digitais. Para além disso, apesar de todo o seu potencial exportador, a maioria das empresas alemãs de referência são antigas, isto é, datam à primeira metade do século XX. Ao contrário dos Estados Unidos, por exemplo, que assistiram a uma total transformação nas suas maiores empresas ao longo dos últimos vinte anos para uma economia pós-industrial, a Alemanha continua a ter empresas focadas numa economia industrial tradicional.
As eleições do final de Setembro dar-nos-ão as primeiras pistas sobre o posicionamento da balança de poder interno dentro da Alemanha. Independentemente de quem ganhe, sabemos que temas como as alterações climáticas estarão no centro do debate interno. Há um grande consenso sobre a necessidade de avançar com medidas robustas que permitam cumprir as metas de reforma climática. Todavia, quanto à generosidade alemã para pagar os dislates do Dr. Costa, haverá mais dúvidas. Nos próximos três anos, a bazuca e o BCE garantirão a festa socialista. Depois disso, veremos quem estará ao leme em Berlim e quais serão as suas opções.