Muitos já se devem ter esquecido, e os mais novos nem saberão, mas houve uma época em que os partidos de esquerda sabiam falar aos homens brancos, às mulheres brancas, aos operários, às camponesas, sem estudos (mas nunca sem educação) e de modos rudes. Não havia campanha eleitoral sem os seus dirigentes, comunistas e socialistas, fazerem discursos nas fábricas do nosso país – e o mesmo se passava nos outros países europeus e nos Estados Unidos. Essa época acabou e dificilmente voltará.

As esquerdas abandonaram os pobres, os que têm menos habilitações e posses, por uma nova agenda cultural. Abandonaram as fábricas e os campos, ocuparam as universidades e os institutos públicos, e falam agora para a burguesia urbana radical. A chamada agenda fracturante pouco diz a quem luta para ganhar a vida de manhã à noite, todas as semanas, todos os meses, e ano após ano. Nos hábitos e nos costumes, muito do eleitorado tradicional das esquerdas é conservador, e não se revê no progressismo radical do Bloco e, cada vez mais, do PS. Essa é de resto uma das maiores angústias – e um dos maiores dilemas – do PCP, perdido entre os seus aliados das novas esquerdas e o seu eleitorado histórico (uma aliança de oito anos com o PS pode ser mais fatal para o PCP do que o fim da União Soviética).

Muitos dos dirigentes do Bloco e do PS não entendem que para a maioria dos portugueses Mamadou Ba é um extremista que gosta de incendiar os debates públicos. Também não entendem que muito do eleitorado tradicional de esquerda concorda com a opinião do novo Presidente do Tribunal Constitucional, João Caupers, sobre a “minoria gay”. Nem sequer percebem que muito do povo de esquerda fique revoltado com ataques a símbolos nacionais e a figuras históricas. O conflito cultural promovido pelos partidos de esquerda coloca-os contra grande parte do povo e dos pobres.

Os novos discursos das esquerdas deixaram de dar resposta às principais preocupações das classes mais pobres. Pior, ficam alarmados com propostas que defendem alterações rápidas e radicais dos seus modos de vida. Os autores de um excelente livro sobre as razões que levaram ao crescimento dos partidos populistas (a tradução portuguesa tem o título de Populismo, A Revolta contra a Democracia Liberal), citam um antigo eleitor trabalhista: “as esquerdas deixaram de dar ouvidos a pessoas como eu.”

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Ou seja, muitos dos eleitores tradicionais de esquerda, primeiro, deixaram de ser ouvidos pelos seus partidos, depois assustaram-se com as novas agendas culturais, e por fim sentem-se desprezados. Pelo meio, e sem se aperceberem do que se passava, as esquerdas deram os seus votos como adquiridos. Mas estão enganados.

Para onde vão estes eleitores? Juntam-se aos abstencionistas? Aumentam os votos do Chega? Ou os partidos tradicionais de direita terão o engenho para irem buscar muitos desses votos? Para que isso aconteça, será fundamental que saibam falar, mobilizar e conquistar o voto dos trabalhadores das centenas de pequenas e médias fábricas, da população rural do interior, dos milhares de pequenos comerciantes, dos pequenos e médios empresários. Em suma, os milhões de portugueses que vivem do seu trabalho, que nada esperam do Estado, que estão preocupados com o futuro dos seus filhos, e que se afastaram da política. Metade dos eleitores portugueses deixou de votar. O PS está no governo com os votos de cerca de 25% dos eleitores portugueses. Eis a história de como uma minoria capturou a democracia portuguesa.

A direita tradicional nunca soube falar a muito do eleitorado mais pobre e com menos privilégios. Ventura tornou-se na voz da insatisfação e da raiva de muito deles. Mas não é suficiente. O voto de protesto esgota-se se os partidos não oferecerem perspectivas de melhoria de vida e de um futuro melhor. É isso que a direita tem que sabe fazer.  Três anos depois de ter chegado a líder do PSD, nunca ouvi Rui Rio falar para essas pessoas. Rio fala sobretudo para os funcionários públicos, para os autarcas. Mas não fala para o povo independente do Estado. É demasiado PSD e pouco PPD.

Neste momento, com tempo para preparar as eleições, a questão central para os ‘partidos AD’ não é saber se vão fazer uma aliança com o Chega. Mas se vão conquistar os votos dos desiludidos com os partidos de esquerda e dos abstencionistas. É com os votos dos pobres, das classes médias baixas e do povo que se fará uma nova maioria de direita. As novas esquerdas desprezam muitos desses eleitores. E eles sabem que os partidos de esquerda deixaram de lhes dar ouvidos.