“Queres conhecer o corpo,” aconselha-se nas Escolas Médicas, “abre um porco.” O conselho nem sempre é prático, mas está cheio de bom-senso. Recomenda que se examine um certo animal em matéria de nós próprios; visa obviar cirurgias auto-inflingidas, ou crimes. Além do mais a palavra ‘porco’ é parecida com a palavra ‘corpo’ (esta parecença é responsável por muitas opiniões características sobre corpos e sobre porcos: que os nossos corpos são porcos; e que, porque os nossos corpos são porcos, os porcos são porcos.)
As fábulas são fruto deste parentesco. O corvo e a raposa é uma das mais antigas e mais conhecidas. Numa das versões, um corvo sem aptidões canoras tem um queijo no bico; uma raposa convence-o a cantar; o corvo abre o bico e o queijo cai; a raposa foge com o queijo. É matéria de facto que os corvos, ao contrário dos canários, não conseguem cantar; mas não é matéria de facto que as raposas sejam capazes de premeditar sequências complexas de acções: por exemplo fazer uma coisa para que outra pessoa (ou animal) faça outra, e assim elas possam fazer uma terceira ou uma quarta coisa, que era a que queriam realmente fazer. Tal requer por parte da raposa talentos que não são vulpinos; requer talentos humanos.
Ora nas fábulas toda a gente tem talentos humanos. Um poeta considerou ser “a sagaz raposa / Brutinho muito matreiro.” No mesmo poema falou ainda de rolas inocentes, pombos ternos, mosquitos enfadonhos e serpentes medonhas; atribuiu sagacidade e manha às raposas, inocência às rolas, ternura aos pombos, intenções tediosas aos mosquitos e assim por diante. Tais atribuições são um boato tão reiterado que acaba por tornar-se uma reputação: constituem ideias gerais sobre as espécies.
As fábulas não dependem da semelhança entre animais e pessoas; o ADN que não partilhamos com as raposas e os corvos é a parte mais interessante do nosso ADN. Dependem antes da reputação de certos animais. São as reputações desses vários animais que determinam que a expressão ‘pomba da paz’ suscite aprovação, mas que a expressão ‘canário da paz’ cause perplexidade. A razão não é que as inclinações das pombas sejam parecidas com as dos humanos, mas que os canários não têm uma reputação conhecida.
Uma fábula sem animais de reputação conhecida não seria uma fábula mas apenas um romance. Consideremos títulos como “A Lula e o Sargo”; “A Anémona;” “Os Dois Alces;” ou “Anna Karenina.” Quem quisesse fazer fábulas com eles correria o risco de causar perplexidade. Serão por exemplo as lulas inconstantes? As anémonas rancorosas? Avarentas? O que caracterizará os dois alces, ou Anna Karenina? Quando um animal não tem reputação, podemos abrir à vontade o seu corpo: mas não encontraremos nenhuma semelhança connosco. “Se queres conhecer o corpo,” conclui-se por isso nas Escolas, “não abras uma anémona.”