Quem contemplar os presépios monumentais de Machado de Castro, encontrará uma infinidade de imagens. Para além da cena central, invariavelmente composta por Jesus, Maria e José, é costume acrescentar os pastores, referidos por São Lucas no seu relato do nascimento em Belém, bem como os Magos, a que se refere São Mateus.
Ao longo dos séculos, a imaginação dos presepistas encarregou-se de preencher a representação do Natal com personagens mais ou menos verosímeis. Presépios há que incluem até a reprodução, em miniatura, da matança do porco, impossível para um povo que estava absolutamente proibido de comer essa carne. Também aparecem igrejas, com os seus párocos, numa anacrónica antecipação do que seriam as aldeias cristãs, que esses presépios, pouco históricos mas muito imaginativos, procuram recrear.
Se há, como não podia deixar de ser, variedade no modo como se representa o nascimento de Jesus, todos tendem a copiar o que São Lucas escreveu no seu Evangelho. Com efeito, é este evangelista que refere a impossibilidade de Maria e José se hospedarem na pousada de Belém (Lc 2, 7), que provavelmente estava lotada pela mesma razão que os levara a deixar Nazaré: o recenseamento obrigava ao registo de cada família na terra de onde era oriunda. Sendo José da casa e família de David (Lc 1, 27, Mt 1, 20), era originário de Belém, embora vivesse em Nazaré, onde exercia o ofício de carpinteiro (Mt 13, 55).
O recenseamento não apenas servia para contabilizar a população, para efeitos bélicos e fiscais, mas também para actualizar o registo das terras, um pouco ao jeito das inquirições medievais. Neste sentido, se José tivesse alguma propriedade em Belém, tinha necessidade de fazer constar no respectivo registo esse seu direito. Esta exigência foi providencial, para que se cumprisse a profecia do nascimento do Messias nesse lugar (Miq 5, 2; Mt 2, 5), como efectivamente aconteceu. O esperado Messias devia ser descendente do Rei David, o que também se cumpriu, porque Jesus era filho legal, mas não biológico, de José (Mt 1, 1-16; Lc 3, 23-38). Provavelmente, também Maria descendia do mesmo rei, embora a pertença a uma determinada estirpe se aferisse então pela varonia e não pela ascendência por via feminina.
A naturalidade belemita de Jesus não oferece dúvidas a nível histórico, mas a mesma não foi conhecida durante a sua vida terrena. Com efeito, Jesus nunca foi tido como sendo natural de Belém, mas de Nazaré, o que dificultou o seu reconhecimento como Messias, pois era pacífica a certeza de que o tão esperado redentor seria da casa e família de David e que nasceria em Belém de Judá: foi o que os sacerdotes disseram, sem nenhuma hesitação ou dúvida, aos Magos vindos do Oriente, quando estes chegaram a Jerusalém e questionaram o lugar do nascimento do Rei dos Judeus, cuja estrela viram e os guiara até Jerusalém (Mt 2, 1-6).
Se não era fácil, portanto, reconhecer que o nazareno era, afinal, o Messias prometido, mais difícil era ainda atribuir carácter messiânico a quem, por ser de Nazaré, era galileu, terra de onde, por sinal, nem sequer tinha havido profetas (Jo 7, 41-42). Quando Nicodemos tentou defender Jesus, os seus pares no Sinédrio justificaram a sua atitude para com o nazareno pelo facto de este ser, segundo supunham, galileu, e, portanto, nunca poderia ser o Messias (Jo 7, 52).
A piedade popular juntou, na mesma representação do nascimento de Jesus, os relatos de Lucas e Mateus. Ambos concordam, como não podia deixar de ser, no nascimento virginal do filho de Maria, bem como na afirmação de que a sua naturalidade é Belém de Judá, não obstante Maria e José residirem em Nazaré.
Se não há, portanto, razões para duvidar que a naturalidade de Jesus é, efectivamente, Belém de Judá, há discrepâncias entre o relato de Lucas, que é o que se reproduz nos presépios, e a narração de Mateus. Por isso, em termos históricos, é incoerente juntar, na mesma representação, as personagens referidas por Lucas no presépio com as personalidades descritas por Mateus, a propósito do nascimento de Jesus.
Com efeito, São Lucas é muito claro quanto ao nascimento de Jesus num estábulo, razão que explica que seja reclinado numa manjedoura, que lhe serviu de berço (Lc 2, 7). O local em que ocorre o nascimento de Cristo era, ou tinha sido, um estábulo, pois só assim se explica a insistente referência à manjedoura (Lc 2, 7.12.16). Ora, os Magos vindos do Oriente não encontram Jesus em nenhum estábulo. São Mateus é explícito a este propósito: “entraram na casa, viram o menino com Maria, sua mãe, e, prostrando-se o adoraram; e abrindo os seus tesouros, lhe ofereceram presentes de ouro, incenso e mirra” (Mt 2, 11).
Os pastores, referidos por São Lucas, encontram Jesus pouco depois do seu nascimento – “nasceu-vos hoje, na cidade de David, um Salvador, que é o Cristo, o Senhor” (Lc 2, 11) – mas o mesmo não se pode dizer dos Magos, que talvez tenham conhecido Jesus já com alguns meses, senão mesmo um ou dois anos. Porquê? Não apenas porque a sua família já tinha conseguido um alojamento mais condigno – a tal “casa” que Mateus refere explicitamente (Mt 2, 11) – mas também porque a ordem para matar o Rei dos Judeus se aplicava a todos os rapazes até aos dois anos de idade (Mt 2, 16). Ora, se os Magos tivessem informado Herodes de que Jesus, que o tirano temia que o destronasse, era um recém-nascido, a ordem dada pelo soberano homicida só seria aplicável às crianças com alguns dias ou semanas, mas nunca até aos dois anos de idade. Aliás, sabendo-se hoje que o dito Herodes morreu, segundo a cronologia actual, 4 anos antes da era cristã, o nascimento de Jesus deve ter acontecido dois anos antes, ou seja, Jesus, provavelmente, nasceu no ano 6 ou 7 antes de Cristo, o que não deixa de ser um curioso paradoxo!
A incoerência de confundir o relato do nascimento de Jesus, segundo São Lucas, com o texto paralelo de São Mateus deve levar, então, à expulsão dos Magos dos nossos presépios?! Talvez algum liturgista mais rigoroso o exigisse, mas o proverbial bom senso cristão aconselha a conservar o presépio tradicional, porque as imagens cristãs, embora históricas, mais do que uma representação factual, tendem a inspirar devoção. Quando alguém chamou a atenção de Miguel Ângelo para a incoerência de, na Pietà, Maria parecer mais jovem do que seu filho Jesus, que jaz no seu regaço, o genial escultor desculpou-se com a pureza virginal da Mãe, que é eterna juventude e beleza.
Que a contemplação do mistério do nascimento de Jesus nos leve, pois, à contemplação e imitação daquela Sagrada Família que é imagem e semelhança da Santíssima Trindade! Santo Natal!