1. Eu sou a pessoa mais inteligente que conheço.
Começou cedo, pouco mais era do que um bebé e já conseguia o que queria dos meus pais, ainda eles estavam casados e eu fazia birras e eles satisfaziam-me todas as vontades, diziam “porta-te bem” e eu portava-me mal e eles perdoavam sempre. Os meus pais.
Porque eu sou a pessoa mais sábia que conheço. Descobri cedo que sabia tudo. Eles falavam-me do tempo deles – sem televisão a cores, sem computadores, sem videojogos, sem nada -, e em valores, em limites, em regras, mas não explicavam bem para que serviam. Seria bom no tempo cinzento deles, hoje são inúteis. As regras decidia-as eu – e eles aceitavam. Eram porreiros, os meus pais, e nem quando descobriram os filmes que alugava com o cartão deles ou o papel de prata para as ganzas que deixei por distração no quarto se zangaram. Amavam-me, deixavam-me fazer tudo.
Sim, porque eu sabia tudo. “Aos 25 anos, sabia tudo: o amor, as rosas, a vida, o dinheiro, Ah pois, o amor! Tinha-lhe dado a volta toda!”.
Os mais velhos estragam-nos a vida. Tudo o que nos agrada é mau, faz mal, é proibido, não presta. Jogar “playstation” a noite inteira torna-nos agressivos; as praxes são perigosas e humilhantes; umas férias em Torremolinos fazem manchetes de jornais só porque nos divertimos, e todos sabem que os finalistas, quando se divertem, divertem-se a sério.
Temos uma arma secreta: a tecnologia. Sabemos tudo. Nada do que os mais velhos nos digam é novidade. Na internet está tudo explicado, melhor do que nas explicações dos mais velhos. Quando conto uma história que acabei de ler online vêm-me sempre falar de “hoax”, dizem-me para desconfiar, verificar as fontes, denunciar, eles não sabem que nós sabemos, a rede cria as suas próprias realidades, e é nova, recente, poderosa, é tudo o que eles foram e já deixaram de ser. Agora é a nossa vez.
Fugimos do Mundo deles, evitando as coisas sérias que só o são porque eles o dizem, para nós a sério mesmo são os amigos, as noitadas à luz do dia, e o amor, claro, primeiro anda-se, e depois, quase sempre, acaba-se. E se houver alguma violência, o Mundo está cheio dela, dizem que as praxes são violentas mas todos querem ser praxados, violência no namoro?, às vezes é boa quando se ama muito, e necessária, faz parte, quando se acaba ficamos amigos, é assim a nossa vida, o nosso Mundo. Os adultos não o conhecem e, por isso, criticam-nos.
Eu sou a pessoa mais inteligente que conheço. Aproximo-me dos 30 e já fiz alguns estágios, agora estou numa de pausa, felizmente os meus pais providenciam, sobretudo depois da separação tornaram-se ainda mais disponíveis, nem sei como fazem, o pai reformado, a mãe a perder rendimento, nunca falham uma mesada. Aos oito deram-me a primeira “play-station”, aos dez um telemóvel, aos 18 recebi logo um carro (em segunda mão mas eles estavam-se a divorciar, não fiz ondas), pelo meio guitarras eléctricas, dinheiro para os festivais, não falhava um, e de bolso, sempre a pedir e eles a dar. O pai às vezes queixava-se, “para que queres este dinheiro todo?”, ele não percebe como é duro ser jovem hoje, há que acompanhar, por exemplo o jogo da roleta dos “shots”, se me calha a mim tenho mesmo de pagar, já viram a vergonha?, andar sempre com “papel” dá prestígio, e estatuto.
E eu sou um líder, porque eu sou a pessoa mais inteligente que conheço.
2. Faz parte da natureza das coisas os jovens revoltarem-se contra os mais velhos. Faz parte da natureza das coisas estes criticarem aqueles dizendo: no meu tempo era diferente.
Não têm razão nenhuma, porque também no tempo deles (no meu), se revoltaram contra os pais, fumaram erva (nem todos, eu sei), beberam além da conta, pediram dinheiro para discotecas, fizeram gazeta às aulas, namoraram às escondidas. Não têm razão porque também então havia violência nas relações, nos casamentos, abusos de autoridade e faltas dela. Também então havia respeito e falta dele.
E têm razão porque, apesar de tudo, se conheciam os limites. A opinião de um jovem, embora respeitada (às vezes), valia menos que a de um mais velho. Afinal, este transportava consigo os ensinamentos das gerações precedentes, vivera já anos suficientes para apreender informação que os mais novos levariam (os mesmos) anos a coligir e a processar. Era normal que os jovens de então, não se sabendo as pessoas mais inteligentes que conheciam, procurassem nos mais velhos conselho, informação, sabedoria. Havia, numa palavra, autoridade, e autoridade não é o mesmo que repressão, coacção ou medo. Autoridade significa respeito.
Até o Não perdeu o valor, porque temos medo de o dizer, não vá alguém sentir-se ofendido.
3. “O relógio tocou 60 vezes, Continuo à minha janela, olho e interrogo-me?, Agora EU SEI, EU SEI QUE NUNCA SE SABE TUDO!, a vida, o amor, o dinheiro, os amigos e as rosas, Não se sabe nunca o som nem a cor das coisas, É tudo o que sei!, Mas isso eu SEI…!” (tradução livre da canção “Maintenant Je Sais”, de Jean Gabin).
O narcisismo é a doença social dos nossos dias, disse o pediatra Mário Cordeiro numa recente entrevista, afirmando: “uma criança que cresça com valores e princípios, limites e amor, mesmo que a determinada altura seja chamada pelo ‘lado negro da força’, tem uma capacidade de se levantar muitíssimo maior”. Ressalvada a referência estelar, fica o que o bom senso ensina: valores, princípios, limites e o amor que infunde respeito e que este estimula.
Quanto eu era criança, e durantes anos, passava horas na cama acordado a tentar imaginar o Mundo sem mim. Não conseguia; era inconcebível, nada fazia sentido sem a minha existência, todos deixavam de ter razão de ser, tudo se sumia num buraco negro e frio, a que eu, na minha ingenuidade pueril, chamava o Nada. Cresci, percebi que a vida não girava à volta de mim, obtive respostas dos meus pais, li livros, aprendi que somos o resultado das relações que estabelecemos e que só têm valor se forem partilhadas e baseadas em amor e em respeito.
Autoridade é o oposto da violência. É saber que não se sabe tudo, respeitar a opinião dos outros, olhar o Mundo pelos olhos deles, rejeitando o narciso que há dentro de cada um de nós. Só assim seremos capazes de ensinar aos nossos filhos, aos nossos jovens, a necessidade de respeitar a autoridade, a vida, o amor, o dinheiro, os amigos e as rosas. Eles não são, nós não somos, os seres mais inteligentes que existem; ninguém é, aliás.
PS. Sim, este texto também respeita a Torremolinos, mas vai mais longe e chega mais perto do que isso: há urgência em reaprendermos a respeitar as opiniões alheias, sabendo que algumas são mais qualificadas (informadas) do que a nossa; precisamos de reafirmar os valores que nos regem, definir os limites do aceitável, de saber amar e ser amados, todo o tipo de amor, com a capacidade de entrega que ele exige. Temos de reagir contra o egoísmo da auto-satisfação. Não sei muito mais do que isso, mas isso EU SEI.