Pedir desculpa é pedir a alguém clemência para com falta cometida, voluntária ou involuntariamente. Nos últimos dias, a ministra da justiça e o ministro da educação pediram desculpa por factos ocorridos no âmbito da respectiva área de governação:

Crato pediu desculpas pelo erro na fórmula de cálculo das listas da bolsa de contratação de escola (um “erro Crato”, como escreveu André Macedo); Teixeira da Cruz apelou à clemência pública pelo colapso do programa Citius, uma plataforma informática essencial para o funcionamento da justiça.

Nada disto é novo: ao longo das décadas desde o 25 de Abril, tem havido por parte dos titulares políticos em Portugal decisões erradas, confusão entre funções públicas e interesses privados, desconcertos linguísticos, anedotas infelizes. As consequências foram desde a apresentação da demissão, nalguns (poucos) casos, à demissão do próprio por terceiros, em geral pelo primeiro-ministro, ou ainda à demissão de terceiros pelo próprio. Nem sempre um pedido de desculpas precedeu essas consequências, nem sempre as desculpas tiveram consequências. Exemplos, de tudo um pouco:

Jorge Coelho demitiu-se de ministro do equipamento social do governo de Guterres após a queda da ponte de Entre-os-Rios, Vítor Gaspar de ministro das finanças assumindo culpas na queda da procura interna; Manuel Pinho (por Sócrates, devido a um gesto de mau gosto), Carlos Borrego (por Cavaco, devido a uma anedota de mau gosto), Martins da Cruz e Pedro Lynce (por Barroso, devido a alegado nepotismo de mau gosto), foram demitidos; terceiros demitidos por ministros em função de culpas próprias ou alheias são legião, bastando evocar o que já aconteceu no caso presente.

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Ilações a tirar não há. Talvez se possa dizer que a tendência é para responsabilizar os outros poupando os “nossos”: Coelho demitiu-se apesar de e contra a vontade de Guterres; Gaspar saiu desgastado e no final de um longo processo em que foi “cozinhado em fogo lento” (perdoe-se-me a expressão) servindo nesse processo e período como antepara do próprio primeiro-ministro; Barroso resistiu enquanto pode a demitir Martins da Cruz; Borrego foi de facto infeliz e não era um governante de primeira linha essencial ao primeiro-ministro. Exemplos opostos, de ministros mantidos apesar dos erros e da má governação mais ou menos patente, são ao invés inúmeros; cada leitor poderá fazer o seu exercício, pensando numa mão cheia de governantes deste governo… do governo anterior… do anterior ao anterior… e por aí fora.

A questão principal é saber até que ponto se deve um governante responsabilizar por erros ocorridos nas áreas que tutela. E que consequências tem essa responsabilização? Deve demitir-se? Deve ser demitido? Deve demitir os responsáveis técnicos ou administrativos? Essa é a questão e não é fácil responder-lhe. Atente-se em três argumentos de Paula Teixeira da Cruz na recente crise Citius: assume integralmente a responsabilidade política. Haverá averiguações quanto às anomalias, pois ninguém é irresponsável. Pediu desculpa pelos transtornos “em nome do Ministério da Justiça”.

As duas últimas afirmações são facilmente descodificáveis: será descoberto o responsável material ou hierárquico directo com consequências para ele/s (despedimento?). A culpa não morrerá solteira, promete-se, ainda que o cônjuge, relutante, seja o que se puder arranjar. E é justamente na perspectiva institucional, isto é, enquanto titular do Ministério da Justiça e em nome dele, que a ministra apela à clemência pública relativamente aos erros cometidos (mas, nesse caso, porquê punir alguém?). Já agora, o Ministério da Justiça em si mesmo não pode ser despedido e, por outro lado, a responsabilidade fica circunscrita, não envolvendo o governo como um todo.

Mais complexa é a aposição do vocábulo “política” à palavra “responsabilidade”. Ou seja, a ministra assume a obrigação de responder pelas suas acções ou pelas dos outros sob sua tutela apenas (digo eu) no plano político. E o que significa isso? Que as consequências para si própria são remetidas ao juízo popular, expresso para o efeito nas urnas quando for ocasião. Sejamos honestos: num sistema eleitoral como o português isso é quase a mesma coisa que não dizer nada. Nem se sabe se Teixeira da Cruz (ou qualquer outro ministro que não seja político de carreira) será candidata nas próximas legislativas (quando a questão, se se puser, se porá), nem os portugueses se vão dar ao trabalho de examinar cuidadosamente as listas eleitorais para avaliar os casos em que “ah ah, cá está, esta senhora vai agora responder pelas suas acções como responsável pelo erro do Citius”, ou das listas de professores, ou outro qualquer e por isso votar noutro partido.

O que significa então a “responsabilidade política” da senhora ministra? Pois significa, tão simplesmente, que o seu chefe – o primeiro-ministro – tem de tirar ilações do que se passou neste caso e decidir, primeiro, do grau de responsabilidade assumido (não apenas que tem responsabilidade, mas qualificá-la) e, em segundo lugar, que consequências tirar dela. Deve portanto o primeiro-ministro ser confrontado com a questão, tão simples como isso. Pode decidir o que quiser e, então sim, a sua responsabilidade – política também – fica entregue ao escrutínio da opinião pública; e, então sim, os cidadãos farão o seu juízo sobre a forma como o político Passos Coelho respondeu pelas acções dos ministros sob a sua tutela; e, então sim, para o bem ou para o mal, poderão reflecti-lo nas eleições. É assim que, se não é, devia ser. Nem Teixeira da Cruz (ou Crato, ou qualquer outro ministro) pode pedir desculpas exclusivamente em nome do seu ministério – ou se pode, isso não significa que todas as desculpas ficam pedidas -, nem quem os tutela se deve eximir às responsabilidades próprias.

Não se trata de assunto fácil. Os membros do governo serão hoje em dia dos mais solitários e angustiados dos homens e mulheres. É uma tarefa cada vez mais difícil, até porque está na moda execrar “os políticos”, e a exposição pública aos amores como aos ódios de uma opinião volátil de públicos cada vez mais informados e exigentes exige paciência de Job e vontade de ferro. Mas o que os titulares da coisa pública não podem é espalhar as suas próprias culpas aos ventos da irresponsabilidade, pedindo desculpas “políticas” como se isso, na verdade, tivesse algum significado real, diluindo os erros pelos quatro cantos obscuros dos seus ministérios ao abrigo de escrutínios alheios.

Não o podem eles fazer, não o pode fazer o seu chefe. Nem agora nem nunca, aliás.