No Canto I da Odisseia, Penélope, rainha de Ítaca, ao ouvir a cantiga do aedo entoando o retorno dos Aqueus após os episódios sangrentos da guerra de Tróia, desce de seus aposentos e pede ao cantor que mude o teor da sua canção. Logo que profere o pedido, Penélope é admoestada por seu filho, Telémaco, que a manda calar-se e retirar-se para os seus aposentos. A palavra (mûthos) é monopólio dos homens. Penélope é, assim, imediatamente colocada no seu lugar por um homem – não pelo seu esposo, ausente, por quem ela sofre e chora; não pelo seu pai, de cuja casa já tinha saído há muito; mas pelo seu filho, fruto do próprio ventre, que ela criou na ausência de Ulisses. A imagem do machismo está aqui retratada: Penélope é censurada e submissa, oprimida.

Porém, Penélope, velada, revela-se ao longo do poema. Potencial viúva, chama a si o desígnio da eleição do seu novo marido – este papel não cabe a qualquer homem (pai, filho, ou outro). Mais, ela concebe as regras dessa escolha: o anúncio do nome do pretendido quando terminar a tessitura de um manto funerário destinado a Laertes, seu sogro. Mas Penélope pretende dilatar este tempo, tecendo durante o dia e desfazendo o seu trabalho durante a noite. Este plano é bem-sucedido até ao momento em que uma serva, pretendendo obter para si favores dos pretendentes, não tem qualquer pejo em delatar a rainha. Consequentemente, tendo agora conhecimento deste logro, os pretendentes exigem a conclusão do manto e a improrrogável escolha. Tal como nos dias de hoje, em que a solidariedade entre mulheres apenas existe quando interessa a um punhado para prossecução de lutas pretensamente comuns, também para Penélope a sororidade é uma ficção.

Deste modo, uma leitura mais atenta da Odisseia revela uma Penélope absolutamente determinante no desenlace do poema épico. Ela subverte o protocolo da escolha, urde um plano para dilatar a eleição do pretendente com quem irá casar e participará com Ulisses, regressado a Ítaca, na vingança sobre os seus pretendentes. Tem, assim, um papel activo e absolutamente decisivo no desenlace da Odisseia, sempre a partir do oikos, do lar, para a polis, a cidade. É a mulher que, não lhe sendo permitido reinar, sabe residirem sobre si os destinos de um reino e que não se demite de intervir e usar os meios à sua disposição para mudar regras e conceber e executar planos, na forma que seria socialmente aceitável naquele contexto. Ela, a quem foi negada a palavra, intervém.

Volvidos mais de 25 séculos sobre a redução a escrito da Odisseia, o actual entendimento ocidental sobre o papel das mulheres e a sua participação na vida pública é bem diferente. Portugal pode orgulhar-se de ser um dos países onde homens e mulheres são iguais perante a lei. As mulheres asseguram uma grande parte da força de trabalho, não há profissões que lhes estejam vedadas por lei. Não têm de pedir autorizações a maridos, pais, ou filhos. A sua participação na vida pública e democrática está assegurada, podendo votar e candidatar-se a cargos políticos. O exercício da mûthos na polis – da política, portanto – é, também, delas. Mas, desde que temos a lei da paridade (“lei das quotas”), é delas apenas na extensão determinada pela lei – participem, mas não demasiado. Hoje, a liberdade para apresentar listas constituídas exclusivamente por mulheres é inexistente. Marisa Matias, que chegou a integrar uma tal lista a um órgão autárquico, é actualmente uma acérrima defensora das quotas, negando a outras a liberdade da qual usufruiu. Novamente, a sororidade é uma ficção. Portanto, a participação das mulheres na vida pública é valorizada, mas apenas na justa medida e sem excessos – não vá alguém lembrar-se de votar uma Assembleia de Amazonas.

Instituídas as quotas, é preciso fazer estudos sobre os seus efeitos. Recentemente, um destes estudos terá chegado à conclusão de que as mulheres – particularmente aquelas que entram por quotas em órgãos políticos democraticamente eleitos, como o Parlamento – demoram mais tempo a atingir o mesmo nível de participação parlamentar quando comparadas com mulheres que entraram no Parlamento antes da lei da paridade. Segundo um dos autores, estas mulheres “têm de dar mais provas de fidelidade partidária e competência até que sejam chamadas ao mesmo grau de responsabilidade das suas congéneres pré-quota”.

Pois eu, pergunto-me: elas, que ao contrário de Penélope, participam na polis e detêm o poder da mûthos, terão verdadeiramente algo a dizer? Ou, perante a pretensa “colocação no seu lugar”, retiram-se resignadamente para os seus aposentos, até porque a sua posição de parlamentar não está em causa? Serão elas rainhas apenas do seu lugar, conformes aos homens que as lá colocaram? Órfãs, Penélope é-lhes indiferente e desconhecida.

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