No final da década passada, a crise das dívidas soberanas asfixiou a circulação monetária, minorou o cash flow e, com isso, atirou milhares de empresas e complexos industriais para situações de ruptura instantânea, arrastando consigo milhares de trabalhadores e – olhando à implementação familiar presente em grande parte da indústria portuguesa – milhares de famílias para situações de pobreza extrema. Tudo isto, consequência da contracção dos mercados, resultado da carência de fluxos financeiros, que impediram o funcionamento pleno de uma economia circular.

A crise à qual nos condenou a Covid-19 tem, naturalmente, características diferentes. É composta por milhares de especificidades e circunstâncias, muitas delas nunca ponderadas na história moderna. De entre todas, há uma que importa realçar: o facto de as decisões políticas terem um impacto directo na procura e, consequentemente, no consumo.

Esta crise, não sendo uma crise clássica, não consiste num decréscimo gradual de consumo até o atingir de um pico negativo. Pelo contrário, esta crise traduz-se em fortes picos negativos e em ligeiros picos positivos, consequência das decisões políticas de limitar – ou não – unidades de compra e preços, ou em recolheres obrigatórios e deveres cívicos de isolamento, que podem – ou não – fazer parte de um vasto leque de medidas, com vista ao combate à crise sanitária.

Sendo os picos negativos, normalmente, transversais a todas as classes sociais – muitas vezes devido a limitações de deslocação -, a verdade é que os picos positivos, ainda que ligeiros, não atingem todas as classes sociais, uma vez que os mais desprotegidos se vêm obrigados a transformar os picos negativos no tão falado novo normal.

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Segundo a Nielsen, mais de 75% dos portugueses afirmam ter diminuído os seus gastos, poupando nas compras para a casa e destacando-se a contracção nas despesas em roupa, electricidade e alimentação. No entanto, não foi apenas o volume de compras que se alterou, o próprio conceito de “ir às compras” adaptou-se às circunstâncias. Reflexo disso, é o facto da procura por compras online ter aumentado 513%.

Um estudo realizado pelo Oney Bank, diz-nos que 31% da pessoas afirmam que o seu rendimento ainda será afectado negativamente pela crise da Covid-19, antecipando mudanças nos seus hábitos de consumo. Admitem, assim, sentir necessidade de poupar para prevenir dificuldades futuras, o que corrobora o facto de mais de dois terços dos portugueses preverem uma redução dos gastos nesta época natalícia, quando em comparação com anos anteriores.

É corriqueiro, quando abordado o impacto da Covid-19 no sector alimentar, ver esse mesmo impacto desvalorizado pelo clássico “as pessoas têm de comer”. Sim, a minoria que o pode fazer, da mesma maneira que o fazia antes da pandemia. As restantes, as que viram os constrangimentos aumentar e os rendimentos diminuir, devido a situações de layoff, falência ou desemprego, vêem-se obrigadas a cortar na alimentação, numa medida extrema, depois de terem cortado em tudo o resto.

A metáfora de que estamos todos no mesmo barco não podia ser mais falaciosa. A verdade é que estamos todos na mesma tempestade, mas alguns em iates de luxo atracados em porto seguro e outros em jangadas de madeira à deriva no oceano.