Como se antecipava, vai haver dinheiro, aparentemente pouco, para aumentar os salários da função pública. Carlos César abriu essa porta na entrevista à RTP e o primeiro-ministro confirmou-o na TVI revelando uma preferência: o pouco dinheiro que há deveria ser usado para aumentar o salário de quem ganha menos. Nesse dia ficou a saber-se que, para um orçamento dedicado a aumentos no montante de 50 milhões de euros, o Governo tinha colocado em cima da mesa das negociações três cenários que iam de aumentos de 5 euros para todos a 35 euros só para quem ganha menos.

Foi nesse contexto que o primeiro-ministro disse, na TVI, que a sua preferência pessoal vai para o cenário de aumentar apenas os funcionários que ganham menos. O PCP, pela voz do líder parlamentar João Oliveira, foi o primeiro a manifestar a sua discordância, alertando que os aumentos salariais são um “um instrumento de valorização dos trabalhadores, de valorização da qualidade dos serviços públicos e de reposição do poder de compra que foi perdido ao longo de quase dez anos de congelamento salarial”. Seguiu-se o Bloco Esquerda com Catarina Martins a defender que os aumentos devem ser “para todos”.

Um pequeno parêntesis. Não se compreende por que diz Catarina Martins que os salários estão congelados há 15 anos quando houve um aumento em 2009 da ordem dos 2,9%, divulgado dias antes da entrega do Orçamento, em Outubro de 2008, e apresentado como  “o maior aumento desde 2001”. Na altura, o então ministro das Finanças Fernando Teixeira dos Santos dizia que era uma coincidência, a dimensão do aumento ocorrer no ano em que iriam acontecer três actos eleitorais, e que essa generosidade se devia ao controlo das contas públicas. Pouco menos de dois anos depois desses aumentos, em Setembro de 2010, o Governo de José Sócrates anunciava os primeiros cortes salariais que vitimaram a função pública – quem ganhava mais de 1500 euros ia ver a sua remuneração cortada entre 3,5% e 10%. Ou seja, só se pode dizer que os salários da função pública estão congelados nominalmente há 10 anos.

Mas voltemos ao nosso tema. Temos duas preferências em confronto: aumentos para quem ganha menos, quer o primeiro-ministro; aumento para todos, querem o PCP e o BE. Qual destas escolhas contribui mais para o desenvolvimento do país, o que inclui aumento do rendimento, combate às desigualdades, valorização do trabalho e da carreira, incentivo à educação e formação e redução das distorções dentro da administração pública e da sua relação com o privado?

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O trabalho é aquilo que a maioria das pessoas têm para vender para garantir o seu rendimento. O preço do trabalho, o salário, é determinado, para simplificar, por um conjunto alargado de factores que vai desde a escassez da qualificação – e que explica, em parte, os salários astronómicos de alguns futebolistas – até ao poder que o trabalhador, ou um grupo organizado, tem para fazer subir o seu preço. O trabalho é uma troca, em que se dá trabalho em troca de um salário. Não é um subsídio em que, por definição, se recebe sem dar nada em troca. Tratar o trabalho assim é desvalorizá-lo.

Quando se aplicam políticas de aumentos apenas para quem ganha menos, está a tratar-se o salário como se fosse uma esmola, como se não se estivesse perante uma troca, uma compra e uma venda. Além disso, assim feito sem mais, os “aumentos só para quem ganha menos” dão incentivos errados. Transmitem a mensagem de que não é preciso ter mais educação e formação para ganhar mais, nem é necessário ser bom profissional.

Há obviamente excepções. Uma delas é que esta regra não deve ser simétrica. Ou seja, quando é preciso cortar salários, como nos aconteceu, é nos que ganham mais que as reduções devem ser mais elevadas. Outra excepção possível é essa preferência, de aumentar mais quem ganha menos, pretender corrigir distorções que vêm do passado. Será esse o caso?

Para responder a essa questão vale a pena revisitar alguns estudos sobre os salários na administração pública. Há pelo menos três, dois dos quais da autoria do actual ministro das Finanças Mário Centeno. O mais antigo, “Os salários da função pública” da autoria de Pedro Portugal e Mário Centeno, data de 2001: o segundo foi publicado no Verão de 2009 no Boletim Económico do Banco de Portugal, é da autoria de Maria Manuel Campos e Manuel Coutinho Pereira com o título “Salários e incentivos na administração pública em Portugal” e finalmente o último em que são autores Mário Centeno e Maria Manuel Campos foi publicado no Boletim de Inverno de 2011 com o título “Diferenças salariais entre os sectores público e privado no período que antecedeu a adopção do euro: uma aplicação baseada em dados longitudinais”. Qualquer um deles é muito interessante, sendo este último mais denso. Claro que estão datados, mas aquilo que se passou a seguir aos dados que usaram em pouco ou nada alterou as grandes conclusões.

A primeira grande conclusão é que os salários praticados na administração pública são superiores, em média, aos praticados no sector privado. Todos os estudos dizem-nos que o salário médio da administração pública é superior ao do sector privado, distinguindo-se apenas na dimensão dessa diferença. No último trabalho citado, o que é também da autoria de Mário Centeno, Portugal aparece, no ano 2000, como o país, num conjunto de estados da União Europeia, em que essa diferença é mais elevada.

Um outro aspecto para o qual em geral estamos alerta diz respeito ao perfil de qualificações dos sectores público e privado. O sector público, pelas características dos serviços que presta, tem maior concentração de trabalhadores com ensino superior: basta pensar na Justiça, Educação e Saúde.  O estudo publicado em 2009 faz uma análise mais fina, por profissões, e conclui que a diferença em relação ao sector privado (prémio) é mais elevada nas “profissões em que o sector público é o principal empregador, contrastando com uma penalização para as profissões em que o emprego é repartido pelos dois sectores”, o público e o privado. Era o caso, com dados de 2005, dos engenheiros informáticos, economistas e juristas, que ganhavam menos no sector público do que aquilo que se ganha no privado.

Finalmente a conclusão que justificou que se revisitasse estes estudos: é nos salários mais baixos que a diferença (prémio) salarial entre o sector público e privado é mais elevada. Ou seja, é no grupo dos funcionários públicos que ganham menos que se verifica que ganham bastante mais do que os seus colegas no sector privado. “O diferencial salarial entre os setores público e privado é tipicamente mais elevado no caso de indivíduos com salários mais baixos. Na parte superior da distribuição das remunerações, os resultados apontam para uma considerável redução dos prémios e, em alguns casos, para a existência de penalizações associadas ao setor público.” É o que se pode ler no trabalho em que o ministro das Finanças é co-autor e que foi publicado no Inverno de 2011. Ou seja, e como já foi referido, há funcionários públicos com graus de educação superior que ganhariam mais se estivessem no sector privado. E é nos salários mais baixos que se ganha bastante mais do que no privado.

Aumentar mais os salários de quem ganha menos vai agravar este problema há muito diagnosticado: os menos qualificados ganham relativamente bem na administração pública, quando comparados com o sector privado. E é entre o grupo dos mais qualificados que a administração tem um problema de baixos salários, o que lhe cria dificuldades na atracção dos melhores.

Repare-se que nada disto contraria um outro objectivo da política económica que é promover a redução das desigualdades. Não se deve é fazer isso através do valor dos salários. Há outros instrumentos, que o Governo já usa, como os impostos sobre o rendimento e os subsídios, para garantir uma distribuição mais equitativa do rendimento, combatendo ainda o poder de mercado que alguns grupos de trabalhadores têm.

O que leva então António Costa a dizer que prefere concentrar os aumentos no grupo dos que ganham menos? O seu ministro das Finanças facilmente lhe consegue explicar que essa política não é a que melhor serve os objectivos de uma administração pública de qualidade, qualificada e com capacidade de atrair os melhores. Mário Centeno estudou profundamente o assunto.

Será a política, pura e dura, que ditou a frase do primeiro-ministro? Ganhar votos que imagina podem estar no PCP ou mesmo no PSD? Fazer com que fossem os outros partidos que o apoiam a dizer o que podia ser impopular: que todos deviam ser aumentados, por pouco que fosse? O salário que recebemos não é um subsídio, nem um donativo, nem um acto de caridade de quem paga a quem recebe.  O salário é o preço do trabalho que se faz. O populismo faz-se destas pequenas frases, destas preferências simplistas de dar mais a quem tem menos através dos salários, desvalorizando o trabalho. É tão fácil concordar. Porque é preciso pensar mais do que uma vez para se perceber que aumentar salários apenas aos que ganham menos não é boa política de desenvolvimento.