No mundo civilizado, são comuns as edições anotadas dos grandes textos da literatura universal, da Bíblia a Lolita. Nada impede, porém, que em Portugal se anotem os pequenos textos da corrente edição do “Expresso”, tarefa que dedico ao seguinte artigo de Isabel Moreira, “Pedro Nuno Santos, por um futuro merecido”.

Como já referi, considero terrivelmente injusta a forma como ocorreu a demissão de António Costa. Foi um choque.
Além da original repetição da palavra “como” numa única frase, destaca-se a original utilização da palavra “choque” para classificar o mais trivial dos acontecimentos: um primeiro-ministro do PS que foge do lodaçal que ele próprio edificou.

“O dia daquele comunicado de imprensa da PGR, com um último parágrafo vago sobre o primeiro-ministro é, objetivamente, um trauma. (…)
A dra. Isabel é um bocadinho hiperbólica: tudo é terrível, choque, trauma. Também merece relevo a adopção fiel das indicações da central de propaganda socialista, que atribui a demissão a um “parágrafo vago”, tão vago e inconsequente que ditou a queda voluntária do dr. Costa. Afinal, o dr. Costa decidiu sair sem culpa nem motivo, opção que não abona em favor do homem. Ao querer fazer dele um inocente no sentido jurídico do termo, a central de propaganda socialista arrisca transformá-lo num inocente no sentido popular.

“Devemos muito a António Costa. As pessoas lembram-se dos horrores que foram vociferados contra a Geringonça e de como esse governo do PS, com o apoio da esquerda parlamentar é, até hoje, altamente apreciado em todos os estudos de opinião. Vivemos em harmonia institucional, paz social e o país ficou mais justo e mais igual. Ganhámos prestígio internacional, equilibrámos as contas que a direita deixou tortas apesar de tantos orçamentos retificativos, devolvemos direitos e consagrámos direitos.”
Não duvido que a dra. Isabel deva bastante ao dr. Costa, desde logo a manutenção de uma cadeira no parlamento. Quanto ao resto, por “esquerda parlamentar” a dra. Isabel quer dizer dois partidos comunistas, de natureza totalitária e anti-democrática. A “paz social” deve-se à cedência aos sindicatos e à apatia endémica dos portugueses. A “harmonia institucional” talvez seja uma referência à cumplicidade do prof. Marcelo na deriva bolivariana destes anos. O “país mais justo” prende-se, decerto, com a facilidade acrescida de os compinchas do regime realizarem negociatas. Ao “país mais igual” faltou acrescentar “à Venezuela”. Os “estudos de opinião” foram feitos no Rato ou junto de velhinhos iludidos por esmolas. O “prestígio internacional” é uma alucinação típica da dra. Isabel e uma obsessão digna de caipiras. Os “direitos” consagrados são três: impostos, pobreza, dependência.

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“De 2015 até agora certamente foram cometidos erros, mas foi com António Costa como primeiro-ministro, quer com o rasgo político e histórico que foi a Geringonça, quer sem o apoio parlamentar à esquerda, que o salário mínimo nacional foi aumentado em 50% e que assistimos a uma redução do desemprego de 12% para 6,1%. A população empregada está hoje em máximos históricos. As pensões, desde 2016, aumentaram 23%.”
Não consigo decidir se a dra. Isabel sabe que está a torturar os factos ou se sinceramente julga que o aumento dos salários e das pensões disfarça o tombo do poder de compra, esse sim terrível, chocante e dramático, para recorrer ao estilo enfático de uma conhecida deputada. Se ainda não somos os mais miseráveis da Europa, a falha não é do dr. Costa, que fez tudo para lá chegarmos. No que depender do PS, lá chegaremos. Sobre o desemprego, num país em que 7 (sete) mil euros anuais colocam um desgraçado na classe média, é capaz de ser preferível viver dos subsídios do IEFP, para cúmulo resguardados do fisco. “Erros”? Quase nenhuns.

“Foi com António Costa que todas as pessoas entraram no arco-íris da igualdade. Todas. (…) É exatamente isso que o fascismo ou a extrema-direita abomina: a liberdade e a segurança de todos, porque as quer só para alguns. O PS é, pois, um espaço de liberdade e de segurança para todas as pessoas. Não deixa ninguém para trás. Assente nos valores da liberdade e da igualdade, numa política de “libertação” das desvantagens socioeconómicas, não esquece direitos civis, não esquece as mulheres, as pessoas racializadas e pessoas LGBTI.”
Na peculiar imaginação da dra. Isabel, parece ter havido, na época A.C. (Antes de Costa), um tempo mítico em que, à luz do dia, fascistas perseguiam, insultavam e chacinavam senhoras, indivíduos de outras raças e homossexuais em geral. Suponho que ela confunde Portugal com a Palestina. Adiante. O importante é que o dr. Costa enfiou toda a gente no “arco-íris da igualdade”, devaneio lírico que, apesar do “espaço de liberdade”, devia dar cadeia.

“(…) Um partido que conseguiu, no Governo, ultrapassar os seus objetivos orçamentais em ritmo e em dose (temos excedente) não pode permitir que o cansaço e a desesperança de muitos (que se entende) seja campo fértil para fazer vender a destruição de abril; isto é, a destruição do SNS, da escola pública ou da segurança social, nomeadamente com as “máximas” dos liberais portugueses da “liberdade de escolha” e do “menos Estado”.”
A destruição do SNS, da escola pública ou da segurança social”. Agora sim, a dra. Isabel foi directa ao assunto. Por azar, não o compreendeu e desatou a responsabilizar os “liberais portugueses” por aquilo que o PS tem conseguido impecavelmente fazer sozinho. De passagem, sublinho que a despromoção de “Abril” para “abril” é um pormenor misterioso ou, quiçá, moderno.

“O Estado somos nós (…).”
Aqui a dra. Isabel é quase explícita: “nós, os socialistas”.

“O Estado não é uma abstração a que se atira setas como que a um inimigo extrativo.”
Desculpe? Ninguém consegue atirar setas a uma “abstracção”, e “extrativo” remete para a medicina dentária ou para a indústria mineira. Às vezes, a dra. Isabel tropeça no seu talento literário.

“O Estado é a comunidade organizada que assim consegue que ninguém deixe de ser tratado num hospital.”
E tem corrido maravilhosamente.

“Pedro Nuno Santos (PNS) foi claro a desmistificar a falsa ideia dos moderados e dos radicais no PS. O alegado radicalismo de PNS surgiu na semântica da direita e em alguma comunicação social. PNS é um social-democrata. Foi ministro dos assuntos parlamentares no Governo da geringonça, um ótimo ministro, numa pasta que exigia recato, diálogo permanente, cautela, ponderação e maturidade. (…)”
Para uma crónica que tem Pedro Nuno Santos no título, estava a ver que o sujeito não aparecia. Pertinho do final, apareceu. E de que maneira: logo enquanto “social-democrata”, o tipo de social-democrata que privilegia alianças e amizades com saudosos de Estaline e entusiastas do Hamas. Dado que a dra. Isabel acumula as carreiras de deputada, jurista e bajuladora com a de escritora de ficção, o deslize compreende-se. Nesta linha, saliento as considerações acerca da prestação do dr. Santos como ministro dos Assuntos Parlamentares. Não sei se a prestação foi “óptima”, mas sei que não foi má: o dr. Santos nunca desempenhou semelhante cargo.

“PNS foi um ótimo ministro das infraestruturas, tendo conseguido fazer aprovar o plano de reestruturarão [sic] da TAP que tantos diziam ser tarefa impossível. Hoje a TAP é uma empresa saudável a dar lucro e o que correu mal a PNS foi pelo próprio assumido, sem hesitação, qualidade que prezo na política.
Ao contrário dos Assuntos Parlamentares, o dr. Santos esteve mesmo nas Infraestruturas. Em ambas as pastas, pelos vistos, foi “óptimo”, se acharmos óptimo subtrair 4 mil milhões aos contribuintes para brincar às companhias aéreas. Em paragens menos folclóricas, seria realmente impossível. Já a última frase é a prova de que, quando quer, a dra. Isabel domina os meandros da ironia. Ou então são os nervos de avaliar a sumidade que o dr. Santos, inequivocamente, é.

“PNS é uma pessoa carismática não porque “parece qualquer coisa”, mas porque se vê na sua palavra e nos seus atos a enorme capacidade de decidir, de fazer, de pensar o tal país do abril que merecemos, aglomerando gente de proveniências diferentes e apresentar resultados. Com as suas cicatrizes e falhas, percebe-se nele a angústia de não ver feito no país o que reunia todas as condições para ter sido feito.”
Felizmente entrámos no derradeiro parágrafo: a emoção tomou conta da dra. Isabel e a coisa ameaça descambar. Vamos por partes: 1) o dr. Santos tem o carisma de uma chaleira; 2) o que se “vê na sua palavra” é que não tem nenhuma, e o que se vê “nos seus actos” é a leviandade de quem jamais trabalhou; 3) a angústia que se percebe é a dos cidadãos receosos de que o poder acabe entregue a um tonto desprovido de noção e escrúpulos.

“É por isto tudo que apoio PNS. Quero preservar o presente abruptamente interrompido e assim feito herança, mas quero mais do que o presente. Quero o futuro que todos e todas merecemos, um abril inabalável, quero que o PS seja liderado pela marca da ação e da coragem.”
Hã? Palpitante de trambolhões poéticos e sabujice ao futuro chefe, o coração da dra. Isabel está entregue. A cabeça, essa, está obviamente perdida.