Vamos descontar a história do IMI, um roubo às claras que Pedro Nuno Santos certamente defende. Para cálculo desse imposto, as propriedades do cidadão comum são avaliadas em cerca de um terço do valor de mercado. Uma propriedade alentejana do dr. Pedro Nuno é avaliada em menos de um décimo. É melhor concluir que se trata de um acaso, ou que o homem tem sorte.

Também é escusado recordar o episódio em que o dr. Pedro Nuno, adversário feroz da especulação, vendeu um apartamento em Lisboa por perto do dobro do valor da aquisição. É evidente que o negócio não é muito compatível com quem, enquanto ministro do sector, declarou que os preços do imobiliário em Lisboa e Porto são, cito, um “crime lesa-pátria”. Percebeu pelas brincadeiras na TAP que lesar a pátria não tira o sono ao actual secretário-geral do PS, embora, repito, não valha a pena ir por aí.

Prefiro notar o caso das ajudas de custo. Entre 2005 e 2015, o período em que foi deputado com uma interrupção pelo meio, o dr. Pedro Nuno beneficiou de 202 mil euros em subsídios de deslocação, alimentação e alojamento. Ao que percebi, uns 75 mil patrocinaram as viagens, que Porsches e Maseratis não são automóveis poupadinhos. Se não erro, o resto, 127 mil mais trocos, cobriu o resto. Garantido, segundo a “Sábado”, é que, durante nove anos, o dr. Pedro Nuno recebeu perto de dois mil euros mensais para financiar alegados passeios a São João da Madeira, onde dizia morar. A chatice é que o dr. Pedro Nuno morava em Lisboa.

Além de morar em Lisboa, o dr. Pedro Nuno morava a 700 metros, contados pelo Google Maps, do local de trabalho. Dez minutos a pé, cinco de carro, seis de bicicleta, talvez sete em patins. A título de “ajudas”, se calhar trinta euros por mês chegariam e sobrariam. PNS discorda, e começou por esclarecer que, até entrar para o governo, São João da Madeira era o “centro” da sua “vida pessoal, familiar, social e política”. Não esclareceu grande coisa: nas datas referidas, o dr. Pedro Nuno tinha de facto casa em Lisboa, a mulher morava e trabalhava em Lisboa e, no mínimo, 80% da respectiva “vida política” decorria em Lisboa. A “vida social” talvez diga respeito a visitas aos pais, à prova de uns mocassins na sapataria que pertenceu ao avô ou a partidas de bisca com os pobrezinhos que tanto o comoveram na juventude, tarefas que não parecem esgotar o conteúdo da “vida pessoal”.

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Se calhar por isso, o dr. Pedro Nuno, ou o PS por ele, avançou com novos esclarecimentos: a notícia dos subsídios serve um “objectivo insidioso”, mesmo que não se esclareça qual é. Voltamos a ficar pouco esclarecidos. O PS não nega os subsídios, o apartamento, a notícia em suma. O PS apenas nega ter havido ilegalidades, esquecendo-se, ou esperando que os cidadãos não se lembrem, que as leis que favorecem as habilidades dos deputados são aprovadas pelos próprios deputados, normalmente por unanimidade. A questão aqui é a decência, e peço desculpa por utilizar uma palavra que os socialistas ignoram. Ao que tudo indica, o dr. Pedro Nuno morava em Lisboa e simulava o contrário para arrecadar uns cobres adicionais. Aliás, o posterior desempenho governativo do dr. Pedro Nuno confirmou em pleno o desprendimento com que o Carismático encara o dinheiro alheio.

Estranho que a propaganda do Rato ainda não ordenasse que o dr. Pedro Nuno, ou o PS por ele, ou os avençados pelo PS, saíssem de dedinho em riste, a berrar que a dignidade da “classe” não pactua com cedências ao “populismo” (indigno seria a “classe” recusar verbas que não merece, e o “populismo” derrota-se mediante assaltos ao contribuinte). Porém, já anda por aí a invocação dos “outros”, os colegas ou ex-colegas do dr. Pedro Nuno na AR, que para amealhar fundos extras juram residir na terra natal, a deles, a dos trisavós ou a de um cunhado. Infelizmente, a sofisticação do “argumento” não impressiona: se a abundância de carteiristas não inocenta cada carteirista, a falta de decoro de inúmeros políticos não atenua o descaramento de cada um. Os “outros” são criaturas igualmente imorais, com a discutível ressalva de que não se candidatam a primeiro-ministro.

Com a legitimação de dois terços do partido e de uma percentagem imprevisível do eleitorado, o dr. Pedro Nuno é candidato a primeiro-ministro. Numa democracia que se levasse a sério, deixaria de o ser. Não necessariamente por causa das ajudas de custo, que o ajudaram a ele e nos custaram a nós, e sim por causa de qualquer das incontáveis embrulhadas que atafulham o seu longo currículo. Infelizmente, a nossa democracia não se leva a sério, pelo que, em vez de cair o dr. Pedro Nuno, caem as recorrentes embrulhadas em que ele se mete. Porque o PS determina as regras. Porque os “telejornais” existem para entreter as massas e não para maçá-las com realidade. Porque o povo é sereno, para não dizer pasmado.

Nada disso retira interesse à personagem, pelo contrário. Num país habituado a reverenciar nulidades, o dr. Pedro Nuno é uma nulidade especial, um zero radical e despreocupado. Um garoto, enfim, que não sabe e não quer saber. Não aprende e não quer aprender. Não disfarça e não quer disfarçar. Não manda mas quer mandar. A vida, pessoal, familiar, social e política, foi-lhe evidentemente fácil, não só fácil a ponto de não experimentar contrariedades: fácil a ponto de não fazer ideia de que há contrariedades. Ou responsabilidades. Ou vergonha. O dr. Pedro Nuno só conhece a vontade de poder, que arrastou para a capital a expensas nossas. Somos o fuzilado que paga a bala.

Quanto ao dr. Pedro Nuno, e a rimar com as suas aventuras na aviação, assemelha-se a um acidente aéreo particularmente grave, cuja ocorrência exige uma extraordinária combinação de erros, circunstâncias e coincidências. Contra todas as probabilidades, o desastre está iminente. A 10 de Março contam-se as vítimas.