A vida é um hashtag. Ou cabe num e se propaga por milhões ou desaparece rapidamente entre os pixels da existência como se nunca tivesse vindo ao mundo.
A estreia simultânea de dois dos filmes mais caros do ano, motivada por guerras de contraprogramação entre estúdios, resultou num frankenstein mediático chamado #barbenheimer. Com direito a verbete na Wikipédia e tudo, que o define, e bem, como “um fenómeno da internet”, essa nova forma de existir num estado algures entre o gasoso e coisa nenhuma e, porém, capaz de erguer e derrubar heróis e vilões como nunca antes na História.
A forma como isto começou não deixa de ser curiosa e, até certo ponto, de alguma justiça poética: a Universal já tinha programado a estreia de “Oppenheimer”, o novo filme de Christopher Nolan acerca do criador da bomba atómica, para dia 20 de Julho de 2023, quando a Warner, que Nolan abandonou aqui há uns anos, anunciou “Barbie” para a mesmíssima data. O processo natural seria que um roubasse espaço mediático ao outro, que se fizessem concorrência e que, no fim, na hora de escolher o que fazer com o seu dinheiro e o seu tempo, o espectador optasse por ver um em detrimento do outro – e que vencesse o melhor (o melhor comunicador, como é óbvio. Porque, nas guerras mediáticas, ser ou não o melhor intrinsecamente, não importa nada).
Na prática, funcionou tudo exactamente ao contrário: a estreia de um alavancou a de outro. Juntos foram mais do que a soma das partes. A discussão nas redes sociais acabou por enrolar os contendores numa só coisa, como uma bola de plasticina, a que chamou “Barbenheimer”: a intenção de ir ver os dois filmes no mesmo dia. Os exibidores, sedentos de recuperar público depois dos dois anos devastadores da pandemia e do furor das plataformas de streaming que chegou a anunciar a morte prematura das salas de cinema, surfaram, inteligentemente, a onda e puseram em campo campanhas a favor da sessão dupla, hábito perdido há, à vontade, duas boas gerações. No fim, até os actores de ambos os filmes já alinhavam na trend e alimentavam a questão subsequente: qual a ordem mais adequada para assistir às fitas. Entre nós, por exemplo, a página da cadeia Cinema City ainda incentiva à compra dos bilhetes para ambos os títulos chamando-lhe “movimento”: “junta-te ao movimento BARBENHEIMER”.
E, de repente, já ninguém parecia estar a dar-se conta do absurdo que tinha instalado.
É claro que a grande conversa em curso fala de dois filmes “opostos”, mas eles não são opostos; são coisas de ordens completamente diferentes. Mas, nesta grande sopa sincrética em que vivemos, em que tudo é reduzido a um título, legenda, hashtag, foto, loop visual de três segundos ou emoji, já ninguém repara que está a comparar uma boneca de plástico ao acontecimento mais mortal da História.
Do ponto de vista financeiro, o fenómeno compensou, sem dúvida. Nos primeiros quatro dias de exibição, os dois títulos já tinham facturado em conjunto mais de 500 milhões de euros a nível global. Em Portugal, lideraram o fim-de-semana com maior receita de bilheteira de sempre – um feito, sobretudo neste tempo em que, como dizíamos, as salas de cinema lutam pela sobrevivência. Mas algo deve estar errado connosco quando já não reparamos na gravidade de comparar “as premissas de poder mudar o mundo para sempre e ser o melhor dia de sempre”, ou escrever que “uma nuvem rosa e laranja invadiu os cinemas portugueses”, como diz em comunicado a Cinemundo, distribuidora dos dois filmes entre nós. Saberá quem escreveu isto do que está a falar quando fala dessa nuvem laranja?
No relativismo absurdo a que chegámos, a História deixou de valer o que quer que seja, os factos têm o mesmo peso que as opiniões e a “cultura” é um imenso caldo aquoso onde elevámos as histórias de Super-Heróis à dimensão de Shakespeare. Só assim se explica que uma boneca, literalmente um brinquedo para crianças, seja elevada a suposto ícone da luta pela igualdade de género, e as bombas atómicas, que reduziram a pó duas cidades, tiraram a vida a mais de 200 mil pessoas e contaminaram as gerações futuras com tudo o que há de disponível no terrível arsenal humano, da radiação ao terror perpétuo, colocadas num pacote a que o New York Times chamou (sim, não foi só a Cinemundo) “o último fim-de-semana feliz em muitos meses”, referindo-se, em pano de fundo, à greve dos argumentistas e actores que tem parado a indústria do audiovisual nos Estados Unidos.
Não se admirem que as pessoas já não saibam distinguir a realidade da ficção. Nem o importante do superficial. Nem o tipo de gente ou caminho político que escolhem para decidir o destino dos seus países. Perdemos qualquer espécie de referência moral, cultural e, agora, até intelectual. Deixámos de saber pensar. Não somos capazes de ler dois parágrafos seguidos. Tudo é um fenómeno pop, uma trend, uma discussão do momento, um brinquedo que tiramos da montra e atiramos ao lixo assim que nos fartamos dele ou outro mais brilhante surge no campo de visão. Somos crianças do tipo mais trágico: das que não vão crescer.
Nada contra “Barbie”, dirigida e interpretada por gente muito capaz. Mas filmes como o de Nolan não são meros blockbusters de Verão, porque nem todo o objecto artístico – aliás, em princípio, nenhum objecto artístico – serve para entreter, mas tocar, perturbar, fazer reflectir. E, nos dias que vivemos, em que a guerra nuclear voltou a ser possível a qualquer momento, é inacreditável que os intervenientes tenham deixado reduzir a pó qualquer espécie de utilidade pedagógica que o filme pudesse ter. Tudo desapareceu na dita nuvem cor-de-rosa, onde J. Robert Oppenheimer é só mais um boneco ao lado de Ken, e a possibilidade da bomba H um novo acessório para a casa da Barbie.
Ficamos à espera dos próximos “fenómenos de internet” semelhantes. Quem sabe uma sessão dupla sobre o ursinho Puff e os crimes de guerra da Rússia, “Winnie the Putin”, ou uma revisitação de Bambi, antes dum mergulho na “onda” do Holocausto, “#Bambitler”? São ideias.