Estes dias vim novamente a Berlim. A Alemanha foi dos países mais radicais nas restrições durante a Covid-19, e nos transportes públicos a máscara continua a ser obrigatória, embora sem grande fiscalização. Deixo duas impressões fortes e alguns livros.
A Alemanha não hesita entre a Rússia e a Ucrânia?
A primeira é que os alemães estão determinados a deixar bem visível a sua rejeição da agressão russa e a sua solidariedade com os ucranianos. Vi muitas mais bandeiras da Ucrânia na capital alemã, por edifícios públicos e privados, do que bandeiras da Alemanha. As últimas sondagens a que tive acesso validam esta impressão, mostrando forte simpatia e apoio da Alemanha pelos ucranianos, apesar do inverno e do aquecimento fixado no máximo de 19ºC (para portugueses habituados a edifícios gelados não é nada mau). Em novembro 92% dos alemães dizia ter muita simpatia pelos ucranianos. Mais de 70% continua a defender o apoio a Ucrânia mesmo que isso tenha algum custo.
Este nível de apoio público é sustentável? Noutra sondagem 56% afirmam que o apoio que tem sido dado é suficiente, e 14% considera-o excessivo, pelo que fica a dúvida de que poderá não haver margem para muito mais ajuda vinda de Berlim. Ora a Ucrânia precisará certamente de mais para aguentar o esforço de guerra e resistir aos ataques russos do que os 2 mil milhões já avançados pela Alemanha. É o segundo doador, embora a grande distância dos EUA e com menos rapidez e eficácia.
Para já, no entanto, a Zeitenwende, a viragem de página anunciada pelo chanceler Scholtz, não dá sinais de reversão. Em frente à embaixada russa, ainda com o escudo soviético na fachada, há um memorial contra a invasão. A câmara municipal de Berlim tem uma exposição inaugurada por Vitali Klitchko que documenta a tentativa sangrenta de ocupar Kiev. Os alemães parecem ter sincera empatia pelas vítimas civis da guerra, uma tragédia que está bem viva na memória coletiva e deixou marcas bem visíveis por toda a capital. Veremos se essa solidariedade não começa a erodir significativamente, se puser em causa a grande narrativa redentora da Alemanha do pós-Segunda Guerra Mundial: o milagre económico. Entre o fim do gás barato russo e a ascensão da indústria chinesa ou da Tesla ele parece seriamente ameaçado, mas a história mostra que seria um erro subestimar a resiliência alemã.
Um passado em obras
A segunda impressão forte é que Berlim continua em obras. Sinal de dinamismo económico? De indefinição quanto à sua identidade? Provavelmente ambas. Há todo um novo bairro de negócios a surgir junto ao pedaço mais icónico do Muro que dividiu Berlim. Um muro erguido em 1962 para impedir a fuga de dois mil alemães por dia das maravilhosas promessas do comunismo em direção ao horrores do consumismo e da democracia liberal.
O Museu de História da Alemanha está fechado até 2025 para… obras. O museu mais visitado, o Pergamon, tem algumas das suas salas mais importantes fechadas… para obras. E, claro, os alemães, assombrados por um passado imperialista especialmente violento, foram pioneiros na devolução de obras de arte ao país de origem. Hoje querem convencer-nos que devemos abrir as fronteiras a pessoas, a investimento, a produtos de todo o mundo, mas parece que a arte, afinal, não é universal, pertence naturalmente ao lugar de origem.
Sei bem que muitos tesouros artísticos foram tomados como despojos de guerra, mais por serem tesouros do que por serem artísticos. Não precisam de nos explicar isso em Portugal, vítima da pilhagens sucessivas desde mouros a franceses, sem esquecer Francis Drake. Essa era uma prática habitual por todo Mundo e por todos os povos até a guerra ser declarada ilegal em pleno século XX.
Os alemães têm, no centro de Berlim, uma Casa das Culturas do Mundo que também parece em obras, mas é uma demonstração física do seu abraço do cosmopolitismo. Mas resolveram devolver à proveniência africana uns bronzes do Benim. Este impressionante império africano era evidentemente guerreiro, esclavagista, expansionista. A sua capital foi tomada e pilhada por forças britânicas em 1897, depois de o Benim ter decidido eliminar uma delegação negocial. Espero, pelo menos, que os alemães não tenham mandando os bronzes para o país errado. Este império africano, cuja capital fica na atual Nigéria, nada tem que ver com o Estado do Benim que se apropriou do seu nome depois da independência.
Veremos o que acontece ao pórtico grego-romano de Mileto, depositado neste museu berlinense. Será devolvido a Roma, sede do império que o construiu? Será entregue à Grécia, que se diz a herdeira do património cultural grego que marcou toda a civilização europeia e se espalhou por todo o Mediterrâneo? Ou irá para a Turquia cada vez mais iliberal de Erdogan, em cujo território se situa hoje a antiga Mileto? Uma coisa há que reconhecer aos alemães, depois de terem sido os últimos grandes saqueadores de arte durante a invasão nazi da Europa, hoje querem muito construir e não destruir, querem muito dar e não pilhar.
Por fim, livros
Aproveitei a viagem para reler Germany: Memories of a Nation, do grande germanista britânico, Neil MacGregor. É um passeio pela história dos povos de língua alemã desde a antiguidade até ao século XX em torno de múltiplos objetos. Eles vão dos utensílios do quotidiano até a coroa dos imperadores, de relógios a automóveis, de monumentos até à cerveja, que surge associada aos germanos já no tempo de Roma antiga. Uma visão de fora, mas cheia de testemunhos de dentro da complexa e rica história alemã. (Também existe em versão podcast.) O segundo livro é uma nova história de Berlim por Sinclair McKay, que já tinha focado a sua atenção em Dresden. Desta vez dedicou-se a Berlim e defende com brio o seu papel central na história europeia e global no último século. Uma cidade que ora seduziu e influenciou a arte e a ciência, ora aterrorizou com o nazismo e depois com o receio de causar uma Terceira Guerra Mundial. Hoje Berlim estará mais normal, mas continua a parecer uma cidade inquieta com um passado pesado, e que continua em obras.