Portugal é um país extraordinário, único e irrepetível. Esta é a principal conclusão a retirar da pré-divulgação, pelo ministro da Educação, dos resultados dos alunos portugueses nas provas de aferição. É que, dizem esses resultados, entre 2019 e 2022 os alunos portugueses melhoraram transversalmente — nos diferentes anos de escolaridade e nas diferentes disciplinas. Atente-se ao milagre: o que nos estão a dizer é que, durante os anos de pandemia, os alunos portugueses aprenderam mais e melhor do que no pré-pandemia. E que, presume o ministro da Educação, a melhoria dos alunos portugueses seria ainda maior caso não tivesse havido pandemia. Isto é de cair da cadeira.

Os académicos de todo o mundo deveriam colocar os olhos no excepcionalismo português. Reparem: os dados internacionais dos últimos dois anos têm demonstrado consistentemente que a pandemia prejudicou a aprendizagem, com a constatação de retrocessos significativos. Pelos vistos, podemos finalmente completar essa sentença e informar as instituições internacionais: a pandemia prejudicou a aprendizagem em todos os países, com a honrosa excepção de Portugal, onde tudo melhorou (menos a oralidade no 2º ano, pronto, nada é perfeito). Agora, das duas uma. Ou o Presidente da República tem razão quando diz que temos os “melhores professores do mundo”, ou esta história está mal contada. Desculpem-me ser o chato de serviço mas, como não acredito em unicórnios, voto na segunda opção – por quatro razões.

Em primeiro lugar, os dados internacionais são realmente brutais e devastadores na constatação das perdas de aprendizagem, estimando-se que alguns desses efeitos sejam duradouros e afectem toda uma geração de alunos. Ou seja, não são só uns resultados fraquinhos que vão passar, são mesmo resultados péssimos que podem ficar. Para se ter uma noção da magnitude, vejam-se os últimos relatórios nos EUA, onde os resultados dos alunos de 9 anos de idade apontam para um retrocesso histórico na aprendizagem: os desempenhos dos alunos pioraram a Matemática pela primeira vez desde a década de 1970 e a queda a Leitura é a maior dos últimos 30 anos. A comparação directa entre os alunos que realizaram esta avaliação nacional (das mais fiáveis nos EUA) no início de 2022 ou no início de 2020 (mesmo antes da pandemia) expõe um desfasamento alarmante, em particular nos alunos de contextos desfavorecidos, que estão a ficar cada vez mais para trás. É fácil encontrar dados e relatórios oficiais com conclusões similares em países um pouco por todo o mundo. À excepção de Portugal.

Em segundo lugar, não há qualquer justificação de contexto para que Portugal possa ser a ilustre excepção à regra nos impactos da pandemia na aprendizagem. Pelo contrário: na UE, tivemos das piores condições para o ensino a distância. Somos dos países com menor literacia digital na UE, dos países europeus com maior diferença no acesso à internet entre meios urbanos e rurais, dos países na UE com maior pobreza e falta de condições de habitação e um dos países da OCDE onde o perfil socioeconómico mais influência tem no desempenho escolar das crianças, sabendo-se ainda por cima que as qualificações dos adultos (os pais e avós dos alunos) são das mais baixas na UE. Além disso, fomos também dos países com maior tempo de encerramento das escolas no ensino básico durante a pandemia e que observou enormes atrasos na distribuição de computadores. Ou seja, temos uma longa série de factores negativos que se acumulam e que, diz a lógica, deveriam acentuar os danos na aprendizagem. Só que, de acordo com o Ministério da Educação, contra todas as evidências e a investigação académica, esta série de factores negativos produziu resultados positivos na aprendizagem dos alunos portugueses. Como explicar o milagre?

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Em terceiro lugar, as explicações para o milagre não batem certo. Confrontado com a questão de como justifica este excepcionalismo português, o ministro João Costa responde com duas ilusões. Por um lado, começa com a afirmação de que “houve um grande trabalho dos professores”. Ora, sendo verdade que houve, presume-se que os professores noutros países também se tenham desdobrado em esforços pelos seus alunos, o que impede que esse seja um aspecto diferenciador do caso português. Por outro lado, o ministro João Costa menciona a ampla adesão das escolas ao Plano de Recuperação de Aprendizagem. Ora, mais uma vez, isso não distingue Portugal, pois programas semelhantes (e, aliás, muito mais ambiciosos) começaram a ser implementados em vários países europeus ainda antes de tal existir em Portugal. De resto, não existem dados de eficácia deste Plano de Recuperação da Aprendizagem português, pelo que não existem indicadores que atestem o grau do seu impacto na aprendizagem (que, a acreditar nas sugestões do governo, teria de ser espectacular). Resumindo: o Ministério da Educação pré-divulga resultados das provas de aferição, mas não oferece explicação plausível para os justificar.

Em quarto lugar, esta pré-divulgação de resultados por parte do Ministério da Educação assentou num procedimento insólito e pouco transparente. A informação que o Ministério da Educação divulgou constará num relatório do Instituto de Avaliação Educativa (IAVE) que ainda não foi finalizado, muito menos publicado. Ou seja, o governo comunicou resultados de análises produzidas por um instituto (que se pretende) independente, antes sequer da publicação do relatório, tornando impossível o escrutínio tanto do alegado conteúdo desse relatório como das interpretações feitas pelo ministro da Educação. Ainda por cima, o governo optou por divulgar esses dados em exclusivo ao jornal Público, para coincidir com o dia de audição parlamentar do ministro (ontem) — desta forma, dominando a agenda mediática sem qualquer possibilidade de contraditório. Ou seja, não somente os resultados anunciados pelo ministro contrariam toda a investigação internacional, não somente não parece haver explicações plausíveis para tais resultados, como a sua divulgação foi feita pela parte interessada (o governo), sob uma óbvia estratégia de comunicação política, alinhada em exclusivo com o jornal Público e imune a qualquer escrutínio. Alguém acha isto sério? Eu não acho.

Poderia prosseguir na enumeração. São inúmeros os problemas associados à interpretação feita pelo governo aos resultados destas provas de aferição. Por exemplo, os enviesamentos das amostras (porque as próprias escolas reconhecem que muitos alunos faltaram em 2019). Por exemplo, a inexistência (por opção política) de outros dados comparados no sistema educativo português que permitam confirmar estas conclusões. Por exemplo, a fiabilidade destas provas ou a hipótese de alterações nas próprias provas de aferição, que ajudem a explicar as oscilações de resultados e que lhes retirem o significado que o ministro já lhes atribuiu (condicionando o próprio IAVE). Enfim, uma série de questões que nem vale a pena discutir porque o relatório do IAVE não está publicado e apenas sabemos aquilo que o governo escolheu que soubéssemos.

Concluo dizendo apenas o seguinte: boa sorte para o país que, orgulhosamente só, escolhe acreditar que é aquele único país do mundo onde os miúdos se safaram às brutais perdas de aprendizagem devido à pandemia. Quem opta por viver fantasias fica à mercê da realidade. E, está visto, para lidar com a realidade, é dessa sorte que os miúdos vão precisar.