O Conselho Europeu aprovou ontem por unanimidade o acordo de saída do Reino Unido da UE, bem como uma declaração política sobre o futuro da relação entre ambos. Trata-se de uma boa notícia, ainda que, como sublinharam Angela Merkel e Donald Tusk, seja uma boa notícia sobre um acontecimento lamentável — a saída do Reino Unido da União Europeia. Este paradoxo deveria sugerir uma reflexão mais alargada sobre o futuro da União Europeia.
No centro dessa reflexão creio que deveria estar a questão da legitimidade do sentimento nacional. Foi em nome do sentimento nacional e da ancestral soberania do seu Parlamento nacional que 17,4 milhões de britânicos votaram a favor da saída da União Europeia (tendo 16,1 milhões votado para permanecer). Não se trata de saber se votaram bem ou se votaram mal. Trata-se de reconhecer que esse foi o resultado de um referendo democrático, convocado pelo Parlamento e depois reconhecido por ampla maioria nesse mesmo Parlamento (ainda que a maioria dos deputados que aprovaram o resultado não fosse a favor da saída da UE).
Isto mesmo acaba de ser reconhecido pelo Conselho Europeu de ontem, que aprovou por unanimidade o acordo de saída do Reino Unido da UE. Mas deve ser observado que o sentimento nacional não desencadeou apenas a saída do Reino Unido. É em nome do sentimento nacional que uma profunda perturbação está a ter lugar nos sistemas políticos de inúmeros países europeus.
Diferentemente do Reino Unido, onde a estrutura dos partidos centrais se mantém, novos partidos radicais vêm emergindo em quase todos os estados-membros da UE. Em vários deles, partidos radicais até há pouco desconhecidos ou marginais estão hoje no governo.
Esses partidos têm sido justificadamente classificados de ‘populistas’. Mas a grande questão consiste em saber por que motivo esse populismo está a ganhar significativo apoio popular em tantos países. Estará o eleitorado a ficar radical e populista? Em caso afirmativo, porquê?
Uma conjectura que venho apresentando há vários anos é que o eleitorado não está necessariamente a ficar mais radical. Uma hipótese bastante plausível é que os partidos centrais europeus deixaram aos partidos radicais o monopólio de um tema que aqueles partidos centrais abandonaram: o tema da descentralização de poderes para o nível local (isto é, na UE, o nível nacional) e da devolução de poderes para os Parlamentos nacionais. Este tema tem-se tornado mais apelativo devido às vagas migratórias que chegam à Europa e à necessidade sentida pelos eleitorados e pelos Parlamentos nacionais de definirem as suas próprias políticas de imigração.
Por outras palavras, ao abandonarem o tema da descentralização e da devolução de poderes para os Parlamentos nacionais, os partidos centrais abriram um mercado eleitoral para os partidos radicais: o mercado do sentimento nacional. E o resultado tem sido que esses partidos radicais demagogicamente exploram o mercado eleitoral do sentimento nacional com uma linguagem populista, radical, por vezes mesmo racista e xenófoba.
Isto está a acontecer porque os partidos centrais erroneamente subscrevem o dogma de que ser europeísta significa necessariamente ser a favor de sempre maior integração supra-nacional — a chamada “Mais Europa” ou “ever-closer Union”. Este é um erro crasso que se arrisca a produzir “Mais Europa” com menos europeus (de certa forma já está a produzir, com a saída do Reino Unido).
A questão crucial reside em tornar possível a defesa de menos poderes para Bruxelas e de mais poderes para os Parlamentos nacionais sem que isso implique necessariamente a saída da União Europeia. Mas isto só será possível se for abandonado o dogma de que ser europeísta necessariamente significa ser a favor de sempre maior integração supra-nacional. Por sua vez, isso implica reconhecer a legitimidade do sentimento nacional e a sua compatibilidade com o ideal europeísta.