Na quarta-feira, sentei-me ao computador, diante da televisão, a assistir ao debate do Estado da Nação e a tomar notas para a crónica de hoje. Anotei intervenções. Perguntas sem resposta. Risos. Palmas. E os exercícios de vaidade e menoridade política do costume. Se o Partido Socialista e o seu governo não exibissem uma auto-satisfação desfasada da realidade do país e dos portugueses; se impunes, crise após crise, sustentados pela administração pública e pelas suas próprias clientelas, não se arrogassem uma superioridade moral onde se espelha o mais profundo desprezo pelas dificuldades dos portugueses; se não respondessem sempre anacronicamente ao maior partido da oposição em claro desrespeito pelos seus eleitores; se não se tivessem negado a responder às perguntas daqueles que são os nossos representantes; se houvesse a menor esperança de que o abismo diante de nós é evitável, teria escrito a crónica que me propus escrever. Assim, e sobre este lamentável PS – e o quanto ele se prestaria ao anacronismo socrático e fácil – nada mais direi. Hoje, pelo menos, em que o estado é de absoluta decepção. Mas pergunto: onde raio está o resto do Partido Socialista? E não me refiro, obviamente, aos pedronunistas. Ou já é só o Sérgio Sousa Pinto?

Então, volto à silly season do pensamento que teima em tornar-se permanente, já que por cá, depois de consolidado nos media, se infiltrou na coisa pública que herdámos a reboque da geringonça: o woke. A melhor descrição do woke, pasme-se, é a que, na sua Teogonia, Hesíodo faz da Hidra, a serpente marítima de hálito e sangue venenosos, com as suas múltiplas cabeças que uma vez cortadas logo crescem de novo. Na base do Movimento de Justiça Social, vulgo, woke, está a Teoria Crítica, a cabeça primeira e imortal da Hidra. É a cabeça nascida nos anos 20-30 com a Escola de Frankfurt. É a que se multiplica em teorias críticas. Múltiplas cabeças. A Teoria Crítica defende a «explicação de todas as circunstâncias que escravizam o ser humano», todas têm de ser mudadas. Todas. Da cultura ao trabalho, à ideia de si e do outro. Só assim o «ser humano será emancipado em circunstâncias de opressão e domínio».

A Teoria Crítica e a Escola de Frankfurt agora designam não apenas os seus filósofos iniciais, os célebres Horkheimer e Adorno e até Marcuse e Habermas, e o pensamento que produziram, mas também as gerações que lhes sucederam de tradição marxista ocidental. A sua génese tem um século e resulta de levar para a academia a revolução que o proletariado não fez nos países ocidentais. O ideal soviético desconseguido nos estados democráticos encontraria, ao abrigo das liberdades que a democracia garantia, o seu caminho nos centros de estudo, nas salas de aula.

Vista assim, da forma mais simples, a teoria crítica não é um mal em si mesma, muito menos quando identifica problemas transculturais e promove a sua resolução. Mas não pode é apresentar-se como a única visão explicativa da realidade e o único meio efectivo de resolução, muito menos quando se radicaliza e põe em causa os fundamentos da sociedade ocidental.

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O feminismo, por exemplo, para além da sua organicidade, também é devedor da Teoria Crítica. Mas quando é convertido no Movimento de Justiça Social, isto é, quando é processado pela agenda woke, acordamos, de facto, mas dentro de um pesadelo para os seus mil fragmentos, as mil cabeças de Hidra: a questão deixa de ser a paridade legal e social, para ser a da natureza da própria mulher; o que/quem a define; o valor dos próprios critérios de definição, da biologia à medicina; o uso da linguagem nas estruturas de poder que enformam a mulher; etc, etc, até à aniquilação dos que se oponham ao todo ou à parte – este é o poder do hálito venenoso.

E isto é grave de diferentes maneiras. O elemento distintivo das teorias críticas, o seu separador de águas em relação às teorias tradicionais, é a praxis. Isto é, o seu propósito é a acção. O activismo. A Teoria Crítica, e as teorias críticas, assentam em três requisitos: têm de ser explicativas, práticas e normativas. Portanto, têm de identificar o problema social; identificar os agentes de mudança; fornecer os elementos normativos para a crítica e objectivos exequíveis de mudança social. Se transpusermos estes princípios, e eles já foram transpostos para a Academia, felizmente não no seu todo, encontramos uma geração de professores que promove, se não a acção, pelo menos a tomada de posição por parte dos alunos. Tal como os alunos activistas a exigem dos professores. Não há neutralidade. Não há imparcialidade. Não há contraditório. Em circunstância alguma um aluno, ou professor, que queira ser neutral, ou tenha uma convicção distinta, pode ser o inimigo. Em circunstância alguma a ciência pode estar sujeita à ideologia. O pensamento único não serve à Academia.

Os fundamentos das sociedades ocidentais, nos seus valores axiais, estão a ser metódica e sistematicamente destruídos. Mas são eles que permitem o Estado de Direito, a pluralidade democrática, a ciência. Sem eles não há salvaguarda da polarização política. Nem há a liberdade que só as democracias garantem, inclusive a de serem postas em causa.

Dito isto, e já que no debate do Estado da Nação, António Costa afirmou abrir uma excepção de leitura aos seus romances para ler o livro do líder da bancada do PSD, aconselho outra excepção, só para cortar uma das cabeças, vá, do marxismo cultural dominante: leia as Teorias Cínicas – e boas férias.

A autora escreve segundo a antiga ortografia