Dizemos que o português é a língua de Camões e com razão. Afastou-se dos latinismos, da influência castelhana, harmonizou a grafia, deu-lhe uma alma própria. Dizemos que Camões é o poeta português e com razão. A sua emoção lírica é incomparável – “Erros meus, má fortuna, amor ardente…” -, a sua força épica não tem par – “canto o peito ilustre Lusitano, a quem Neptuno e Marte obedeceram.” Muita gente ignora que ele foi também um homem de intervenção social, um influenciador, um político. E, ao contrário de certas figuras, não teve um exílio dourado, muito pelo contrário.

O activista social

Quando chegou às Índias, logo se exasperou com o que considerava as injustiças dos homens e da própria vida. Escreve a um amigo de Lisboa, que aquela terra era “mãe de vilões ruins e madrasta de homens honrados”. Segundo ele, tudo o que de mal contestava no reino, medrava ali sem controlo. Os gananciosos ganhavam postos cimeiros, a sede de tudo conseguir em pouco tempo era a marca dos tempos, o desprezo pelos valores cristãos uma verdade, a justiça de vão de escada que aos poderosos dava rédea solta, era uma descarada realidade.

E naquela Índia portuguesa, cheia de aristocratas de segunda linha, a estalar de ganância, mais que de nobres valores, surgiu um folheto anónimo – Disparates da Índia -, com umas sátiras que glosavam o envilecimento e a devassidão vivida em Goa.

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“…Achareis rafeiro velho
Que se quer vender por galgo:
Diz que o dinheiro é fidalgo
que o sangue todo ele é vermelho…”

Sendo pública a sua veia poética – que a fama o precedia -, foi logo a Camões apontado a dedo. Bem alegou que os versos eram anónimos e que dele nada tinham, mas não lhe valeu de nada. Por aquelas partes, poucos (ou mesmo ninguém) tinham a sua verve e saber, pelo que logo recebeu o desagrado do vice-rei. Tais dichotes eram punidos pelas Ordenações Manuelinas e, estando ele ainda sob a alçada da justiça, logo viu a sua situação agravada, sendo deportado para trabalhos na Armada do Sul, como soldado raso, peão sem voz, a quem estava reservado o fundilho do porão. Seguiu na Nau das Drogas, no domingo a seguir à Páscoa, rumo a Malaca. Mais tarde, embarca na flotilha de Francisco Martins para os mares da China…

O influenciador

Em 1561, Camões estava de novo a contas com a justiça. Chega a Goa o novo vice-rei da Índia, D. Francisco Coutinho, Conde de Redondo. Um fidalgo que se recordava dele dos tempos áureos da corte e o liberta do cárcere, após um gracioso memorial que este lhe dirigiu. Como vemos, Camões usava a arte da sua escrita para pedir mercês para si próprio, que a necessidade a isso o obrigava. Mas não era avaro, versejava também em favor dos que admirava. Por exemplo, junto do mesmo vice-rei, solicitou ele os bons serviços para que este autorizasse a publicação do livro do físico e estudioso Garcia de Orta, “Colóquios dos simples e drogas e cousas medicinais da Índia”. Escreve ele:

“…vosso favor e ajuda ao grão volume,
Que, impresso à luz saindo,
Dará da Medicina um vivo lume,
E descobri-nos há segredos certos
A todos os antigos encobertos…”

Como sabemos, tão importante livro acabou por ser publicado. Pela sua importância, e por fineza do autor, as palavras do poeta foram adictas à sua edição. Temos assim um dado curioso: este foi o primeiro poema de Camões que conheceu letra de imprensa. O poeta de Portugal viu publicado o seu primeiro poema num livro drogas e cousas medicinais, fruto do seu empenho em ajudar um amigo.

O político d’Os Lusíadas

Os Lusíadas são o grande poema da glória portuguesa. Mas na época foi mais que isso. Para além de um descarado enaltecimento a el-rei D. Sebastião, a obra era também um libelo acusatório contra a degradação moral e política do reino. O poema procurava reerguer a dignidade de Portugal, quando o império se mostrava já falido, perdido em guerras, enredado nas garras de uma nobreza corrupta…

E porque é que um livro com objectivos tão patrióticos, suscitou tantas perseguições? Tantas inimizades?

Ora, acontece que, ao cantar as glórias de outrora, mostrava as tristezas da época. Aos elevar ao estatuto de deuses os homens de outras eras, por comparação, mostrava a pequenez dos que detinham os poderes no seu tempo.

Mais que um poema, Os Lusíadas apresentavam-se como  um verdadeiro livro ideológico.

Desde logo, Camões mostra-se áspero com os jesuítas a quem acusa de serem uns usurpadores do nome de Jesus e esquecidos do seu papel de sal da terra e apóstolos da fé.

“…E vós outros que os nomes usurpais
De mandados de Deus, como Tomé,
Dizei: se sois mandados, como estais
Sem irdes a prègar a santa Fé?
Olhai que, se sois Sal e vos danais
Na pátria, onde profeta ninguém é,
Com que se salgarão em nossos dias
(Infiéis deixo) tantas heresias?…”

Mas, também aponta o dedo acusatório à nobreza decadente que ele bem conhecera nas Índias, esquecida que estava dos valores cavaleirescos e totalmente rendida aos interesses mercantis. Era a crítica mordaz a uma sociedade de novos-ricos, usurários e bandalhos, que gozavam do beneplácito dos governantes e dos religiosos que, cuidando de emendar o mundo, não se emendavam a si próprios.

“… ó vós que as famas estimais,
Se quiserdes no mundo ser tamanhos,
Despertai já do sono do ócio ignavo,
Que o ânimo, de livre, faz escravo.

E ponde na cobiça um freio duro,
E na ambição também, que indignamente
Tomais mil vezes, e no torpe e escuro
Vício da tirania infame e urgente;
Porque essas honras vãs, esse ouro puro,
Verdadeiro valor não dão à gente:
Melhor é merecê-los sem os ter,
Que possuí-los sem os merecer.…”

A poesia épica apresenta-se como guardiã da história, cinge o heroico e o belo, dignificando a memória e libertando da morte os maiores da pátria. Os Lusíadasprocuraram assim recuperar o nosso passado glorioso, resgatando também o ideal cavaleiresco que levou à edificação do império. Mas não se escusou de alertar o próprio rei: “guarde-se não seja ainda comido, desses cães que agora ama…”

Ao chamar a atenção para os exemplos gloriosos, para as figuras gradas da história do reino, procurou chamar a atenção d’el-rei para a necessidade de se robustecer o pundonor como povo e a consciência da força de Portugal, minado que estava pela devassidão.

“…Deixas criar às portas o inimigo,
Por ires buscar outro de tão longe,
Por quem se despovoe o Reino antigo,
Se enfraqueça e se vá deitando a longe;
Buscas o incerto e incógnito perigo
Por que a Fama te exalte e te lisonje…”

O reino estava dividido, como sempre. Uns temiam o futuro de Portugal governado por um jovem que dava sinais de doenças várias e, preferiam por isso, entregar-se ao poderoso rei de Castela. Outros defendia a honra lusitana, e a sua independência a todo custo. Estes últimos viram no poema de Camões uma exaltação pátria, um canto ao valores de outrora, que engrandecia Portugal. Por isso, a edição d’Os Lusíadas veio a público. Interessava politicamente a uma facção da nobreza mais patriótica, assim como, interessava a uma facção do clero, preocupada com a crescente força dos jesuítas — por então, muito próximos à coroa espanhola. Era um livro de poesia, mas, era nas entrelinhas, um livro político – Camões sabia disso. Quem o apoiou também.