Lula da Silva a falar sobre a guerra não teria grande importância, se fosse apenas Lula da Silva a falar. Seria mais uma opinião entre outras.

Sendo o Presidente Lula, o Presidente do Brasil a falar no quadro de uma visita de Estado à China, após reuniões com o Presidente Xi Jinping, as declarações assumem estatuto de posições de Estado e carregam carácter de intencionalidade. Não podem ser ouvidas, lidas e entendidas de ânimo leve. Foram ditas com o propósito de serem escutadas – em Moscovo, em Kyiv, em Pequim, em Washington, em Bruxelas e em todas as capitais que seguem com proximidade ou interesse a guerra na Ucrânia. O Presidente Lula também falou para Lisboa, onde vem nos próximos dias.

A doutrina Lula, enunciada no dia 14, à partida de Pequim, é esta: “É preciso que os Estados Unidos parem de incentivar a guerra e comecem a falar em paz. É preciso que a União Europeia comece a falar em paz para que a gente possa convencer o Putin e o Zelensky de que a paz interessa a todo mundo e a guerra só está interessando, por enquanto, aos dois.” Esta doutrina Lula está fundamentalmente errada. Surpreendentemente, tende a colocar Lula (e, com ele, o Brasil) do lado da guerra, contra o lado da paz.

É muito chocante que Lula da Silva, Presidente de um dos BRICS (o Brasil), em visita a outro dos BRICS (a China), quisesse alinhar o Brasil com os interesses da Rússia (outro dos BRICS) e sugerir, apontar, arrastar a China na mesma direcção. Seria um perigo para a paz mundial se os BRICS, usando a palavra paz, se alinhassem com a continuação da guerra. Felizmente, a China é mais prudente e mais sábia. Deixou o Presidente do Brasil a falar sozinho, nesta deriva.

O Presidente do Brasil não pode ver uma coisa e declarar o contrário do que vê. O Presidente do Brasil não pode ver a Rússia invadir a Ucrânia – há mais de um ano que o Kremlin alimenta uma brutal invasão da Ucrânia – e dizer que são os Estados Unidos que incentivam a guerra. Não é só ridículo; é intrinsecamente perverso.

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Quem declarou a agressão a 23 de Fevereiro de 2022? Putin. Quem rompeu as fronteiras leste e norte da Ucrânia? As tropas russas. Quem tem ocupado militarmente território na Ucrânia e bombardeado as suas cidades? A Rússia.

Só uma parte quer a guerra: a Federação Russa. A outra defende-se dela e resiste: a Ucrânia. Os Estados Unidos, a União Europeia e muitos outros exprimem solidariedade com o agredido, em linha com o Direito Internacional. Do lado do Kremlin (o agressor), a Bielorrússia, a Coreia do Norte, a Eritreia e a Síria dão-lhe apoio contra o Direito Internacional.

A guerra da Rússia contra a Ucrânia pode ser desviada retoricamente ou ampliada contra os Estados Unidos, a União Europeia, o Reino Unido, a NATO, o Ocidente. Isso é um erro flagrante, para distrair e afastar do essencial. A guerra da Rússia é realmente contra as Nações Unidas, dirigida a derrubar os seus princípios e objectivos. Esse é o seu maior perigo: o regresso a 1939 em 2022. A guerra de Putin é contra o edifício internacional de paz e segurança instituído pela ONU, após a derrota do nazismo, em 1945, e prolongado pela OSCE, na Europa, desde 1975. O inimigo de Putin é a própria paz e o sistema de Direito Internacional que a pode assegurar.

O Presidente Lula da Silva não pode deixar de identificar nas acções militares da Rússia e no discurso de Putin o renascer da visão nazi da política internacional. O Itamaraty reconhece certamente a fonte nazi da ideia de legitimidade de “operações militares especiais” para agredir Estados vizinhos e da repescagem do Anschluss para anexar a Crimeia. Desde a morte de Hitler em 1945, nunca a Europa enfrentou tempos tão ameaçadores quanto estes. Esta Rússia de Putin constitui para a paz na Europa e mundial perigo maior que a própria URSS nos seus piores tempos.

O Presidente do Brasil sabe certamente que a Ucrânia não é uma congeminação dos Estados Unidos, nem da União Europeia. A Ucrânia, herdeira de longa história própria – acidentada como a de tantos Estados e Nações da Europa Central – tem o desenho territorial que lhe foi dado pela própria Rússia, no quadro da União Soviética. Foi essa mesma Ucrânia (com o mapa que Putin agora manda invadir e bombardear) que, a par da URSS, foi um dos 51 membros fundadores das Nações Unidas, partilhando esse privilégio com a Bielorrússia. E é essa mesma Ucrânia, com o território definido pela Rússia, incluindo a Crimeia, que acedeu à independência em 1991, à semelhança de tantas antigas Repúblicas Socialistas Soviéticas. Tudo em paz, até à guerra de agressão desencadeada por Putin.

A Ucrânia, herdeira de poderoso arsenal nuclear da URSS, cedeu-o integralmente à Rússia, pelo Memorando de Budapeste de 1995, com garantias de segurança prestadas pela Rússia, Estados Unidos da América e Reino Unido, co-signatários. A guerra que Putin desencadeou atropela a obrigação assumida pela Rússia de “respeitar a independência e a soberania e as fronteiras existentes da Ucrânia”. Putin foi ao extremo de acenar com ameaça nuclear. Quanto aos Estados Unidos e Reino Unido cumprem não só o Direito Internacional geral, como honram as obrigações específicas do Memorando de Budapeste.

O Presidente do Brasil não pode pensar que alguém no mundo acredita que Lula pode não ter visto a destruição de tantas cidades ucranianas (Mariupol, Kyiv, Kharkiv, Zaporizhzhya, Mykolaiv, Bucha, Kherson, Bakhmut, Irpin, Kramatorsk, etc.), algumas literalmente arrasadas. Vê certamente a crueldade diária desta guerra desapiedada, que se abate indiscriminadamente sobre áreas e infraestruturas civis, matando e ferindo a eito velhos, crianças, mulheres, entre todos os outros. E reparou por certo no carácter unilateral desta guerra, em que não há um só vidro partido em qualquer cidade russa adentro das suas fronteiras ou uma só vítima civil na Rússia. Esta guerra, o Presidente Lula vê-o e sabe, é um sádico exercício de tiro ao alvo dos senhores do Kremlin sobre a Ucrânia e o povo ucraniano. Uma ordem de arraso e massacre.

Nunca a Ucrânia atacou a Rússia. Só a Rússia desencadeou a guerra. Por isso, a paz depende unicamente da Rússia. Nesta altura (o que não deixa de ser um escândalo político mundial), a Federação Russa preside ao Conselho de Segurança das Nações Unidas. Curiosamente, era a Rússia que presidia também a este Conselho em Fevereiro de 2022, quando lançou a invasão.

Para fazer a paz, basta que o embaixador russo em Nova Iorque, Vassily Nebenzia, tenha presente que o Conselho de Segurança detém “a principal responsabilidade na manutenção da paz e da segurança internacionais”; e, numa reunião do Conselho até ao fim deste mês, a partir da cadeira da presidência, anuncie:

«O Presidente do meu país, Vladimir Vladimirovitch Putin, mandatou-me para comunicar ao Conselho de Segurança das Nações Unidas que, a partir das 00:00 horas de hoje à noite (hora de Moscovo), cessam todas as operações de forças militares russas em solo ucraniano, como tal entendendo o compreendido dentro das fronteiras internacionalmente reconhecidas. A partir da mesma hora, todas as forças militares russas retirar-se-ão para dentro das fronteiras da Federação Russa, com cessar-fogo integral, que só será quebrado para responder a eventuais disparos das forças ucranianas.

O Presidente do meu país, Vladimir VladimirovitchPutin, instruiu-me para transmitir ao Conselho que, nos termos do artigo 2.º da Carta, a Federação Russa reconhece plenamente o “princípio da igualdade soberana de todos os (…) membros [das Nações Unidas]” e irá “abster-se (…) de recorrer à ameaça ou ao uso da força, quer seja contra a integridade territorial ou a independência política de um Estado”, além de se comprometer com a observância de todos os valores, princípios e objectivos inscritos na mesma Carta.

O Presidente do meu país, Vladimir Vladimirovitch Putin, quer transmitir ao Conselho de Segurança das Nações Unidas que este gesto da Federação Russa traduz a firme vontade do seu governo e do povo russo de contribuírem para a paz e a segurança na Europa, na Ásia e do Mundo, acreditando que permitirá o desanuviamento imediato da situação na região afectada pela guerra e abrirá nova oportunidade para a resolução de diferendos entre Estados vizinhos exclusivamente por meios pacíficos, bem como para o progressivo renascimento de relações de respeito e compreensão mútuos, de cooperação e, desejavelmente, de amizade.»

Seria certamente um momento histórico. Faria do embaixador Vassily Nebenzia uma figura memorável. Putin não entraria para a História, já lá está. Mas entraria agora pelas boas razões. Esta simples declaração poria fim à guerra e estabeleceria de imediato a paz.

Já uma declaração similar de Zelensky não o conseguiria, mesmo que a fizesse. Porquê? Porque Zelensky representa a vítima: não pode parar a agressão. Zelenky só pode defender a Ucrânia ou vê-la esmagada. A guerra só pode ser parada pelo agressor. E, parando a guerra, chega a paz. Todos sabemos que o Presidente Lula o sabe. E sabe que nós sabemos que sabe.

Ao visitar Portugal, o Presidente do Brasil, por tudo quanto já se comentou internacionalmente, tem noção de que as suas declarações atingiram também Portugal, pela forma injusta como alvejou a União Europeia. Portugal é Estado-membro da União Europeia e também da NATO, aliança estritamente de defesa. Só por enviesamento a favor de Putin ou manifesta má-fé, é possível sustentar a ideia de que a guerra da Ucrânia é obra da UE e/ou da NATO. Mas é possível e necessário ter a ideia de que, enquanto se mantiver esta orientação agressiva e alucinada do Kremlin, os países europeus em geral estão sujeitos – todos eles – a um quadro de extremo perigo, dado o grau de cinismo, de irresponsabilidade e de atrevimento que exibe. A tragédia que se desenrola na Ucrânia é a evidência de ser assim.

Portugal está dentro do perímetro dos ameaçados. O Presidente Lula não pode aproximar-se de quem ameaça Portugal e os portugueses e, assim, atraiçoar a genuína amizade que dedicamos calorosamente ao Brasil e aos brasileiros. Tem o dever, durante a sua estadia em Portugal, não tanto de dar explicações, mas de rectificar as declarações feitas em Pequim sobre a guerra desencadeada pela Rússia.

A paz não se constrói fazendo a vontade aos agressores e alimentando seus caprichos. Pelo contrário, este alimento sempre alimenta a continuação, o crescimento e a ampliação da guerra. É a lição da História.

Portugal quer a paz, que só se alcança quando a Rússia parar a guerra, que começou e continua. Se quer a paz, é isso que o Presidente Lula da Silva tem de dizer ao Presidente Putin: pare a guerra. E, já agora, pedir ao Presidente Xi Jinping que faça o mesmo. O mundo inteiro ficaria mais seguro.