Se não me falha a memória, esta será a minha segunda crónica de uma visita a Inglaterra que programei para terminar antes do Brexit (neste caso marquei o regresso para 30 de Outubro). Mais uma vez, a data (que teria sido agora 31 de Outubro) foi adiada.

Isto começa sem dúvida a ser cómico. E faz lembrar uma sátira que circula pela internet dizendo que daqui a cem anos o primeiro-ministro britânico continuará a ir a Bruxelas pedir um adiamento do Brexit — o que constitui uma tradição de que ninguém sabe a origem, mas que atrai muitos turistas.

É uma excelente sátira, a mais do que um título. Em primeiro lugar, porque assume que durante cem anos o actual impasse vai permanecer — mas sem qualquer violência, guerra civil ou, na linguagem arcaica revolucionária (ou contra-revolucionária), ‘mudança de regime’. Esta expressão ‘regime’ é em rigor quase totalmente desconhecida na linguagem política de língua inglesa: aplica-se apenas a culturas políticas exóticas — onde facções rivais têm tido o hábito peculiar de se enfrentarem sucessivamente em revoluções e contra-revoluções, alternando em ditaduras de sinal contrário.

A razão é simples e deve ser recordada: como explicou o historiador francês Elie Halevy, a Inglaterra experimentou todas as revoluções da era moderna, sem nunca ter de recorrer a uma Revolução — embora em rigor isto seja sobretudo verdade após a revolução conservadora-liberal de 1688, que apenas visou restaurar “as antigas liberdades constitucionais da Magna Carta de 1215”, contra os fanatismos rivais dos republicanos e dos monárquicos absolutistas. Em rigor, a revolução de 1688 limitou-se a restaurar a soberania do Parlamento — que temos testemunhado através da televisão.

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De certa forma, pude observar este “mistério inglês” (expressão de Halevy) nesta minha mais recente visita a Londres e Oxford. Contrariamente ao que eu esperava, ninguém estava muito zangado com o Brexit. Todos estavam satisfeitos com a convocação de eleições parlamentares — e devo assinalar que a esmagadora maioria dos meus interlocutores era contra o Brexit, e corre o sério risco de perder as eleições.

Em contrapartida, todos estavam seriamente preocupados com um outro tema (totalmente ignorado entre nós): a crescente infiltração chinesa na sociedade britânica, sobretudo nas universidades.

O tema tinha acabado de ser trazido para as primeiras páginas pelo Sunday Times de 27 de Outubro. Segundo este jornal, os serviços de informação britânicos (MI5 e GCHQ) teriam formalmente avisado todas as universidades britânicas de que estavam em curso sérias ameaças à segurança nacional com origem no regime comunista chinês.

Um primordial veículo destas ameaças seria a presença massiva de estudantes chineses nas universidades britânicas, sendo que muitos deles serão simplesmente espiões comandados pelo estado chinês. O número actual de estudantes chineses no Reino Unido é 106 mil, tendo duplicado na última década. Neste período, mais de 500 cientistas militares chineses estiveram em universidades britânicas. Verificaram-se entretanto reincidentes casos de roubo de dados e de investigação sensível.

Os serviços de informação britânicos alertaram ainda para a dependência financeira gerada pela presença massiva de estudantes chineses (que nalguns casos pagam propinas anuais de 50 mil libras). Foram citados inúmeros casos de pressões de grupos de estudantes chineses, e mesmo da embaixada chinesa em Londres, exigindo a inúmeras universidades a censura de textos e a proibição de eventos — sobretudo relacionados com Hong Kong, Tibete e a província de Xinjiang.

O caso atingiu proporções dramáticas quando o chanceler da Universidade de Oxford, Lord [Chris] Patten, testemunhou na semana passada, perante uma comissão do Parlamento britânico, que tinha de facto recebido uma solicitação da embaixada chinesa para cancelar uma visita a Oxford do Dalai Lama. Disse Chris Patten que recebera um telefonema do embaixador chinês dizendo que a visita a Oxford do Dalai Lama era “um insulto à República Popular da China”. Lord Patten terá respondido que o Reino Unido é um país livre, a Universidade de Oxford uma universidade livre, e que, por essa razão, não recebe ordens de ninguém. Acresce que o convite partira de um clube de estudantes e que a reitoria de Oxford se orgulha de não comandar as inúmeras associações livres que nela encontram o seu lar.

Lord Patten terá acrescentado no Parlamento, ainda segundo o Sunday Times, que temia o tipo de interferência chinesa já verificada nas universidades australianas, bem como a recentemente revelada pelo director do FBI norte-americano, Christopher Wray. Segundo Wray, estão em curso nos EUA mil (!) investigações sobre potenciais infiltrações chinesas em instituições comerciais, universitárias e governamentais norte-americanas.

Finalmente, Chris Patten terá defendido a criação de um organismo nacional que pudesse ser consultado pelas universidades sobre a origem dos financiamentos de contratos propostos por entidades estrangeiras, designadamente chinesas, a universidades britânicas. Os contratos internacionais de investigação nas universidades britânicas envolvem cerca de 1,39 mil milhões de libras anuais.

Em suma: algumas culturas políticas têm orgulho em ser livres (há muitos séculos); outras, nem por isso (e a verdade é que também não são livres há muitos séculos).