Para um “Anglófilo maníaco” (como se auto-designava o pai de Isaiah Berlin e gosta de ser designado o autor destas linhas), o que se tem passado ultimamente na cena política britânica é simplesmente preocupante — para dizer o mínimo.

Comecemos pela acusação de que o primeiro-ministro britânico produziu um “golpe de estado” no passado dia 28 de Agosto, porque “suspendeu o Parlamento”.

Trata-se de pura fantasia, fundada no desconhecimento ou/e na má fé. Tradicionalmente, o Parlamento britânico retoma as suas sessões no início de Setembro, após as férias de Agosto, e suspende de novo as sessões cerca de duas semanas depois — por um período de duas a três semanas, em que têm lugar as conferências anuais dos partidos.

Relativamente a esta tradição, o primeiro-ministro Boris Johnson acrescentou apenas duas semanas — em rigor, apenas mais seis dias úteis de suspensão da actividade parlamentar, numa sessão parlamentar que já é uma das mais longas dos últimos 400 anos. Chamar a isto “golpe de estado”, “suspensão da democracia” ou mesmo “uma nova ditadura” é um delírio peculiar. A decisão é inteiramente legal e constitucional.

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Uma vez esclarecido este ponto, cabe agora perguntar como devemos avaliar politicamente a decisão — inteiramente legal e constitucional — do primeiro-ministro. Na minha opinião, trata-se de uma decisão de alto risco, que vejo com apreensão.

A razão é simples: até aqui, o Brexit era entendido como restauração da soberania nacional britânica — o que, no Reino Unido, é sinónimo da ancestral soberania do Parlamento nacional. O Parlamento tinha constitucionalmente convocado um referendo; logo a seguir, tinha aceitado o seu resultado (o chamado ‘Brexit’); depois ainda, tinha recusado em três votações o acordo ditado pela UE.

Em suma, existia uma clara linha de legitimidade: entre um referendo constitucionalmente convocado pelo Parlamento, cujos resultados foram aprovados pelo mesmo Parlamento; e uma recusa por esse mesmo Parlamento (em três votações) dos termos do acordo ditado pela UE.

Agora, ao suspender o Parlamento por mais seis dias úteis do que seria habitual — na fase decisiva de decisão sobre a modalidade do “Brexit”, que está previsto para 31 de Outubro — o primeiro-ministro abriu espaço a que seja posta em causa aquela clara linha de legitimidade. É esse espaço que está a ser demagogicamente explorado por todos os que basicamente não gostam do resultado do referendo constitucionalmente convocado e ratificado pelo Parlamento, ou que se opõem a um Brexit sem acordo com a UE.

Por outras palavras: a partir de agora, o chamado ‘Brexit’ pode passar a ser entendido como uma pretensão “correcta” de uma facção política particular (que prefere sair da UE), contra outra “correcta” facção política particular (que prefere ficar na UE, ou impedir uma saída sem acordo). Isto é chocantemente contrário à tradição da política britânica desde a chamada “Gloriosa Revolução de 1688-89”.

Basicamente, como recordaram os consagrados historiadores T. B. Macaulay (1800-1859) e G. M. Trevelyan (1876-1962), a revolução de 1688-89 foi uma revolução para garantir que novas revoluções não seriam necessárias — o seu principal propósito foi restaurar um sistema constitucional e parlamentar, no interior do qual todas as propostas rivais pudessem concorrer pacifica e civilizadamente.

Por este motivo, Trevelyan aliás alvitrou que, em vez de “Gloriosa”, a revolução de 1688 podia ser chamada de “Sensata” [Sensible]. E tinha toda a razão. Ao contrário da generalidade das revoluções — que visam a vitória de uma visão “correcta” contra as visões “incorrectas” — a revolução de 1688 visara “apenas” a coexistência e concorrência leal, no âmbito do Parlamento,  entre diversas visões, cada uma das quais se considerava “a correcta”.

A questão crucial (parafraseando a historiadora americana Gertrude Himmelfarb) é: quem lê hoje Macaulay e Trevelyan? Nas Universidades dominadas pelo “politicamente correcto”, eles são hoje designados por “dead white males”. E receio que, entre alguns dos entusiastas “Brexiteers” (sobretudo entre os que inacreditavelmente se auto-designam como “Espartanos”), Macaulay e Trevelyan sejam hoje percepcionados como “excessivamente moderados”.

Estou certo, no entanto, de que o primeiro-ministro Boris Johnson leu com atenção Macaulay e Trevelyan — na sua passagem por Eton e Oxford, bem como pela direcção da revista The Spectator. Quero por isso acreditar que terá consciência do elevado risco inovador da sua decisão. Faço por isso votos de que tome a curto prazo a única decisão que me parece poder apaziguar e restaurar a ancestral civilidade da política britânica: convocar eleições.

Homenagem a Alexandre Soares dos Santos: foi um grande empresário e, sobretudo, um espírito livre e independente, a quem Portugal (e a Polónia) muito fica(m) a dever. Em 2014, o Instituto de Estudos Políticos da Universidade Católica atribuiu-lhe o Prémio Fé e Liberdade. Vale a pena recordar a homenagem que então lhe foi prestada por Manuel Braga da Cruz.