1. Qual Rio será agora o meu, pergunto-me, prestes a chegar. Deixando vagamente esfumar-se a versão número quatro do Orçamento de Estado, o caso Cameron/União Europeia onde ninguém se portou bem, os refugiados, a Síria, as inquietantes eleições norte-americanas… Que aqui no Brasil, são coisas do “exterior”, sempre vistas ao longe, “ideia” que no mínimo exige período de adaptação a uma europeia.

Durante anos, o Rio de Janeiro foi só um e sempre o mesmo, desenhado para mim por José Aparecido de Oliveira, quando me adoptou. Mas isso foi há muito tempo, quando o Brasil era uma esperança e servia de exemplo. Agora a “cidade maravilhosa”, fatalmente espelhará as ilusões semi-perdidas: o país está endividado, dividido e desacreditado, parte da classe política está sob suspeita, o governo é fraco, há mais violência, maior corrupção, pior desigualdade (e até um mosquito assassino e com nome próprio). E mesmo que haja finalmente poderosos e políticos corruptos na prisão, que longe vai a estação forte de Fernando Henrique Cardoso… Quando, há cerca de vinte anos, presidindo com raro acerto a este “continente”, virou a face do Brasil: disciplinando-o financeiramente, salvando a sua moeda (“foi o criador do Plano Real”) e, depois, tonificando-o politica, social e economicamente. Credibilizando interna e externamente o seu país.

Um político excepcional, Fernando Henrique. Bons ventos, bons tempos. Hoje, uma miragem.

2. O Rio de Janeiro foi-me um dia milagrosamente oferecido pelo Embaixador José Aparecido e como não honrar agora a memória de um dos maiores e mais generosos amigos que Portugal contou deste lado do Atlântico?

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Aparecido era um mineiro de gema, com veia política e culturalmente dotado. Jornalista, deputado, activista contra a ditadura militar, trabalhou com Jânio Quadros na Presidência da República, foi ministro da Cultura de Tancredo Neves, dos Negócios Estrangeiros no governo de Itamar Franco e embaixador em Lisboa. Com afã e afinco inventou a Comunidade Países de Língua Portuguesa, na bondade da qual acreditou com fervor, mas acreditou (quase) sozinho.

Na época que recordo hoje, há quinze, vinte, trinta anos, o Embaixador Aparecido, já reformado de altas funções, apesar de dirigir instituições e fundações de prestígio, ocupava-se sobretudo da celebração da vida. Cerzindo a sua rede de afectos, patrocinando talentos, espevitando espíritos, animando as artes, cruzando gente interessante e diversa. Possuía a arte de viver que cumulava com ser um homem de amigos. Era alguém transversal a gerações, meios sociais, profissões, vocações – e era-o genuinamente. Circulando com igual à vontade e pertinência pelo poder em Brasília, nos meios culturais, em tertúlias intelectuais, nos botecos das ruas, nas casas dos amigos, fossem em sofisticadas “coberturas” ou nas favelas.

E quando serviu com devoção, serviu o seu país em Lisboa, fez da embaixada um porto de abrigo onde, com insuspeito êxito, se trocavam estados de alma entre melancólicas bonomias e festivas boémias.

Quanto mais o tempo escorre sedimentando as coisas, mais me dou conta que há pouquíssimas pessoas a quem esteja tão grata como à memória do Embaixador Aparecido.

Agarrando-me pela mão, levava-me com ele pelas suas moradas. A minha sôfrega curiosidade encontrava amparo no insuperável cicerone que ele era: a partir dele, o Rio nunca mais foi senão uma tela onde o Zé Aparecido ia imprimindo gente com o estatuto de personagens.

Podia ser Oscar Niemeyer, aos 88 anos, contando-me um recente encontro com Álvaro Cunhal ali mesmo, naquele atelier suspenso sobre o mar de Copacabana, ou elaborando sobre a sua arquitectura (“o espanto mostra que a coisa é diferente, o olhar tem de estar limpo para captá-lo”). Podia ser o centenário jornalista e escritor Alexandre Barbosa Lima Sobrinho (ex-político, ex-advogado), que com cento e um anos, continuava, lesto e vivo, a escrever no “Jornal do Brasil” e a presidir à Associação Brasileira de Imprensa; podiam ser ricos, habitando grandes mansões, em grandes relvados, perguntando-me ainda, e horrorizados, pela “revolução comunista de 1974”.

Ou então era outra banda de gente. Era Millor, fazendo superlativamente humor, desenho, cinema, pintura, teatro, genial Millor Fernandes, inventor do incomparável “Pasquim”; era o Chico Caruso, cartoonista do Globo, como o Ziraldo, o Jaguar, ou o Paulo, gémeo igualzinho do Chico, que nos melhores jornais exibiam o seu traço cáustico; podiam ser a pulposa Fafá de Belém e a fogosa Eliana, mulher do Chico, produtora cultural; o geólogo Luis Gravatá, um ser maravilhoso que certamente conhecia melhor os subsolos da alma humana que os outros; a dinâmica editora Renata Lima, o sedutor “advogadão” Técio Lins e Silva, dono da melhor varanda da cidade, a Marila Kranz, sóbria e discreta artista plástica… Um mundo.

Aos sábados juntavam-se a almoçar no “Satyricon”. Era gente com o sentido agudo do convívio. Diante da lauta feijoada despejavam-se com vertigem e voracidade, dezenas (e dezenas) de caipirinhas enquanto se desconstruía a politica, o mundo, o Brasil e a vida. Eram todos de esquerda, alguns da esquerda radical, desprezavam alternadamente o poder, tinham os seus códigos, fabricavam a sua própria ordem. Como o Zé Aparecido fazia obviamente parte disto – ouvido à mesa como um patriarca – fiquei com lugar à mesa quando lá estava.

Depois fui eu própria abrindo novas alamedas. Uma vez entrei pela solene Academia Brasileira de Letras, pedindo para ver a sua presidente. Era a escritora Nélida Pinõn, fascinante criatura com o que escrevia e dizia, e indefinível mulher. Nasceu cumplicidade instantânea que dura até hoje. O mesmo aconteceria mais tarde com a maravilhosa Marília Pera que morreu em Dezembro, deixando os palcos vazios do seu génio tão versátil: no canto, na tragédia, na comédia, na dança. Mas também houve Maria Betânia que fui entrevistar ao Rio, numa casa na Gávea que tinha uma capela onde ela se quis recolher antes de conversar. E voltámos a conversar várias vezes.

E António Fagundes, e Fernanda Torres e Tónia Carrero, que morava numa casa emoldurada pelo Jardim Botânico e me dizia que “chorava de emoção sempre que pisava um teatro português” (e chorava); ou o Jô Soares que entrevistei “in loco” no seu habitual cenário televisivo, em S. Paulo, humor inteligente e ironia fininha. É outro que “adora Portugal”.

Ah, e esse príncipe entre os príncipes do teatro… que era Paulo Autran, actor portentoso. Com tal espessura no palco, que nos exigia tudo na plateia. Conheci-o há quarenta e tal anos, em Lisboa, no saudoso Teatro Monumental onde viera com as pirandelianas “Seis personagens em busca de um autor” e a impressão foi tão forte que nunca mais o perdi de vista. Tinha uma pousada em Paraty onde gostava de ir, era culto, refinado, sensível, cosmopolita, conversador inesquecível. Morreu com pena de não ter representado mais vezes em Lisboa. Ia ao Campo Grande e convidávamos também o Jorge Silva Melo, que achávamos um magnífico interlocutor para o Paulo.

3. A vida e o feitio que Deus me deu proporcionaram que viesse a entrevistar todo este vasto mundo, uns no papel, outros no écran. Daria um livro e quem me dera poder agora continuar por esta estrada da memória, que doce seria. E com tanto que havia a contar, apesar de já nada ser como foi. O Zé Aparecido já não está, alguns dos outros também não, e a tertúlia do Satyricon certamente perdeu já um pouco do viço e da graça. E sei lá se ainda há tertúlia ou sequer o Satyricon, tenho de ver isso um destes dias.

Mas mesmo que fale como se evocasse outra encarnação (deles e minha), há algo que terá de ficar aqui inscrito. Porque vale a pena e é bonito. Quem sabe, impressionará até aqueles meus compatriotas mais desconfiados e permanentemente descrentes sobre a condição portuguesa. Falo das estantes das muitas casas onde fui no Brasil, recheadas de cronistas, poetas e escritores de Portugal. Sempre que chegava, alguém se levantava, dirigia-se a uma prateleira, escolhia alguns livros: Diogo do Couto, Eça, Pessoa…

“Se gosto de Portugal?”, ouvi eu a Oscar Niemeyer. “É lógico que gosto, o Brasil é o prolongamento de Portugal, sempre adorei e li a literatura portuguesa…”

Barbosa Lima Sobrinho – que morreu, activo e lesto, com 103 anos – era um cultor do português: “a língua portuguesa é a unidade do Brasil e a luta pela unidade do Brasil é uma luta pelo português. Escrevi um livro sobre a língua portuguesa e tenho os clássicos todos”. Da sua biblioteca “escorriam” para as minhas mãos Herculano, Camilo, Ferreira de Castro, vários cronistas – Gaspar Correia, João de Barros, Diogo do Couto. E Eça de Queiroz, sempre: “Eu prefiro o Eça…”.

O escritor Josué Montello (autor do inesquecível livro “Os Tambores de S. Luís”), no seu apartamento frente ao oceano, em longo e privilegiado diálogo, também me falou da literatura portuguesa como se ela fosse da família: com intimidade e carinho. Tinha tudo, lera tudo.

O mesmo com o filósofo, poeta, escritor e ensaísta Gerardo de Mello Mourão, que era do Ceará, conhecia a nossa História e amava as nossas letras. Guardando ambas religiosamente em casa.

E Nélida Pinõn, claro, com biblioteca do tamanho do mundo (“a cultura capta os instantes dos homens, está entre eles para semear a discórdia, o fluxo das emoções desmedidas mas reveladoras”), sábia júri do Prémio Camões, autora de vasta obra, surpreendente e singular: “Se descasco uma batata é como se estivesse contando a história da humanidade numa tapeçaria, fiz até um conto sobre isso… Ao mesmo tempo sou também uma mulher alegre que fala muito e gosta da boémia, sendo essa solitária…”

São estes nomes excepções? Não me parece. É antes o caso de uma elite cultíssima, a olhar com gosto e sem sombra de complexos, para o meu lado do Atlântico.

4. Também aqui andei com Mário Soares, em tournée. Corria a primavera de 1998, voámos de Portugal para o Brasil para lançar o primeiro dos três volumes que fiz com ele, e nos levou ao Rio, a Niterói, a S. Paulo e a Brasília.

Soares era sistematicamente recebido como uma espécie de Rei de Portugal, do 25 de Abril, da liberdade, da democracia. Era pura e simplesmente adorado, aclamado, mimado, entrevistado, requisitado, o que de resto ele parecia achar natural: não havia um exuberante caso de amor entre o Brasil e ele, ele e o Brasil?

Brizola foi buscá-lo ao aeroporto do Galeão para “o ouvir sobre o intricado momento político”. Depois, pelas cidades onde andámos, foi encontrando políticos, artistas, intelectuais, músicos, jornalistas, amigos, enchendo salas e pedindo autógrafos.

Jogava “em casa”, igual a si próprio, feliz, leve, ligeiro, solto, deslizando entre grupos díspares de pessoas, de esquerda ou direita, conhecidos ou anónimos, ricos ou pobres.

Sorvendo a vida com apetite. E deixando essa mesma assinatura impressa em todo lado.

5. Em Brasília será outra vida: Tentarei aperceber-me da saúde política de Dilma, do estado das oposições, dos trabalhos dos tribunais. Dos caminhos do Brasil, do seu futuro, do seu destino. Aqui, não. Aqui no Rio – e peço desculpa da franqueza – celebrarei a vida.

Como o Zé Aparecido fazia comigo.