1 Passaram-se cem dias. A conta redonda inspirou comentários e contra comentários, mas a espuma da actualidade fez o seu habitual exercício de capturação do espaço público e logo no dia seguinte, exit os cem dias do governo da AD. E no entanto… a verdade é que, ao longo da navegação deste governo, notei algumas coisas politicamente interessantes.

A primeira foi que o invisível mas poderosíssimo ponteiro da política se tinha movido no relógio. Para um dos lados, como na Torre de Pisa. Há um mês e tal, na SIC Notícias, lembro-me de ter chamado atenção para o movimento dos ponteiros deste relógio tão sensível, mas fi-lo ainda com a cautela que se recomenda entre a certeza e a incerteza.

O certo é que o poderoso ponteiro sinalizava um caminho: primeiro avançara para a autarquia da capital, depois rodou para os Açores, seguiu para a Madeira, e agora estacionou na governação nacional. Ou seja, o relógio acerta pela hora do centro e da direita. Será melhor? Assim-assim? Pior? Não se sabe. Sabe-se apenas que ninguém (ou quase) teria acreditado ou posto um cêntimo na aposta de um centro-direita que governasse mais de cem dias. Não se lembram? Montenegro não era ninguém; a tão louvada estabilidade socialista tinha dado lugar a uma situação parlamentar “impossível”; o novo governo atabalhoava-se; há três meses haveria eleições a curto prazo. Não tem sido assim. O ponteiro do relógio político continua onde estava (para a semana lá irei).

2 Outra nota que retive refere-se ao que, de forma geral – obviamente que com excepções, há sempre excepções –, se costuma ouvir na “bolha” mediática sobre o relativo bom andamento dos cem dias, uma espécie de eco mais monocórdico que atento: ah, as expectativas sobre o governo eram tão baixas e tão, tão baixas quanto ao próprio Montenegro, que qualquer coisa que fizessem daria nas vistas. E pronto. Olhar para governações, governantes e governados para quê? As expectativas não eram tão baixas? Eram! Então…

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

3 Uma das piores heranças de António Costa foi o seu horror (também não gosto da palavra) à direita. Era o “diabo”, nunca desistindo do uso deste extraordinário epíteto com o qual hostilizava uma parte dos portugueses (e não só os que em 2015 votaram em Passos Coelho). Foram anos disto. A não ser quando nos intervalos Augusto Santos Silva anunciava ao país que se ela – direita – levantasse a cabeça (?) “levava”.

Haverá poucas coisas tão visceralmente antidemocráticas quanto a esquerda suportar mal que os votos retirem a direita dos bastidores e certifiquem o seu regresso ao palco do poder e de parte dele a S. Bento.

Tratada como um estorvo, a direita talvez fosse liminarmente enxotada para fora da cidadania se a esquerda, unida ou desunida, pudesse enxotá-la sem que o mundo visse. Não podendo, recorre-se aos estafados tiques, tão nossos conhecidos: o tom irritadiço e desconfiado com que a AD é evocada, seja sobre que assunto for (mas foi sempre assim com Cavaco, ou Sá carneiro, ou Passos, ou, ou); a militante desconfiança sobre as reais intenções de quem dirige o país; a suspeita quanto à governação, nas medidas, nas nomeações para as executar, nos calendários. Nada de muito novo, os artifícios são os do costume. De novo só houve uma troca de “clichés”: Pedro Nuno Santos estreou um que atira mil vezes para o ar do tempo político: o “governo não dialoga”. Da mesma forma que António Costa também tinha o seu, que usava, abusava e (nos) enjoava – “a culpa era de Passos”. Usou-o até ao fio e ao fim, nunca teve outro. Pedro Nuno aprendeu e faz o mesmo com o seu, gasta-o: o Executivo “foge ao diálogo”. Para o PS de Santos o diálogo é afinal simples de concretizar, bastava que o governo da AD governasse através do PS , com o programa do PS. E a cereja deste bolo seria a governação ser feita pelos deputados sentados no hemiciclo e se possível dispensando o próprio Governo.

Estou a caricaturar? Claro. Mas ninguém ignora que a muito prioritária linha vermelha que Luis Montenegro se impôs a si mesmo seria justamente permanecer impávido face uma governação do parlamento, á revelia do Executivo.

4 É verdade que o PS – este PS – está desunido e inquieto. Inseguro de rumo. Sem perceber a quase estranheza de alguns dos seus gestos ou verbos (e não duvido que haja no perímetro do PS quem de boa fé também se aflija com a perfilhação actual de alguns mandamentos e comportamentos).

Como não me comove especialmente que uma empresa de sondagens tenha há dias dado boa nota à família socialista, confio naquilo de que me apercebo: uma boa parte dos socialistas interrogam-se sobre a bondade da estratégia (?) de Pedro Nuno Santos. Com razão, ela não é de fácil nem de imediato entendimento: o líder tanto pode ser imprudente, avisado, imprevisível, lógico, ilógico, intempestivo, mas nunca é sempre a mesma coisa. A clareza dos seus pontos cardeais não é evidente, o chão que pisa é politicamente inconsistente, os objectivos brumosos. Talvez seja por isso que Pedro Nuno Santos pareça sempre zangado. Sorri pouco, a afabilidade não é lhe é pronta, a temperança também não.

5 Mas – e eis outra nota que tomei – um dia destes, pareceu-me subitamente que alguma coisa mudou. Pedro Nuno é capaz de ter percebido que “isto” – a indefinição, o desnorte, os sinais errados para dentro mas também para fora do PS – não podia durar. Não servia a ninguém, a começar (sobretudo) por ele próprio. Julgo também ter notado nele a vontade – ou deveria dizer a lucidez? – de alguma mudança de rumo. Dizer recentramento seria excessivo para ele e sobretudo para os seus conselheiros, mas o estar “mandatado” para negociar o OE com a AD é um sinal. Veremos. Percebe-se que o que ocorreu à esquerda na Grã Bretanha e em França, na semana passada, o tenha posto nervoso: o Labour foi para um lado, o (ressuscitado?) PS francês para outro: inspirar-se em qual? Escolher quem? Lidar com o quê?

Ignoro o que pensa o novo líder socialista destes seus pares europeus mas para começo de conversa deu um bom sinal de maturidade política e sobretudo de autoridade pessoal e partidária ao recusar o convite apressado para se juntar a um modesto clube da esquerda nacional: nem ele é treinador deles, nem padrinho, nem mecenas. Por enquanto. Mas como são os dias do “por enquanto” que politicamente o devem ocupar e preocupar hoje, porque haveria Pedro Nuno Santos de legitimar uma cópia pobrezinha da (perigosíssima) Frente Popular francesa?

6 Um dia posso ter de vir aqui desculpar-me perante o leitor por ter errado sobre o que acima escrevi. Acontece aos ossos deste ofício. Mas o que concluo neste momento – repito, neste momento – é que é Pedro Nuno Santos e não Luís Montenegro quem mais precisa de uma bússola e de oxigénio político.

Paradoxal? Talvez, mas estou sempre a lembrar-me de que a política é a maior fornecedora de surpresas que jamais conheci.