Arthur C Clarke, um dos mais prestigiados autores de ficção científica, disse em tempos: “Qualquer tecnologia suficientemente avançada não se distingue de magia”.
A humanidade sempre teve fascínio pela tecnologia e pela forma como “controla” a natureza e o meio. Sentimo-nos “deuses”, senhores do nosso destino. Mas nessa jornada de glória, no rescaldo do caminho da celebração, é o temor o que frequentemente nos assalta. Entramos pelo desconhecido, elevamo-nos à categoria de divino e logo tememos que o nosso atrevimento tenha consequências devastadoras. Sempre foi o nosso “cérebro reptiliano” a alertar-nos para os riscos de intrusão no desconhecido. É assim desde há mais de seis mil anos, quando o homem inventou a escrita e gravou em placas de argila, para memória, um belíssimo texto, “A Epopeia de Gilgamesh”. Este é um dos primeiros registos da relação entre os homens e o divino. Este texto com mais de 4500 anos corresponde à versão mais antiga do “Génesis” que se conhece, e relata, entre outros, o mito da criação do homem e a relação deste com os deuses.
O grande dilúvio é um exemplo de uma destas vinganças, e a história de Atrahsis está replicada em inúmeras culturas, numas por contaminação geográfica, noutras a distância geográfica e temporal aponta mais para um temor com raízes na biologia.
As causas deste temor original não são claras, mas acredito que a civilização resultante da agricultura e os grandes agregados humanos tenham permitido a constituição de grandes exércitos, o que, se empoderava o homem, levantava-lhe também o receio de os deuses se poderem sentir ameaçados.
Na antiguidade clássica temos inúmeros exemplos gregos e romanos da relação de temor e “atrevimento” perante os deuses. As histórias repetem-se, umas vezes por amor, outras por ódio, outras ainda em resultado da capacidade do homem em controlar o seu meio, mas todas elas indiciam um receio escondido, o medo pelo atrevimento humano face ao divino.
O mito grego da “caixa de Pandora” é exemplo deste atrevimento. Neste, Hefesto, por ordem de Zeus, cria Pandora como forma de se vingar da humanidade após o titã Prometeu ter dado aos homens o segredo do fogo. Esta possuía uma caixa, a caixa de Pandora, que quando aberta, libertaria males até então desconhecidos pelo homem (doenças, guerra, mentira, ódio, etc.).
Na história, mesmo no período pós clássico existem inúmeros exemplos onde a intromissão do homem no “domínio do divino” resultou na vingança dos deuses, ou na condenação pelos pares como forma de prevenir a ira divina, mas também de proteger a sua autoridade – Giordano Bruno e Galileu Galilei.
Mas foi sempre o nosso “cérebro reptiliano” a fonte dos receios e medos, como forma usual de reação face ao desconhecido.
No século XIX a observação nos teatros anatómicos do efeito da eletricidade no tecido muscular levou a que alguns vissem nesta força (a eletricidade) o elixir da vida. Quem a controlasse, controlaria a própria vida. O livro “Frankenstein ou o Prometeu Moderno”, de Mary Shelley, escrito em 1816, relata este desejo de controlo dos segredos da vida e como o ser “criado” se revoltou contra o criador.
Com a revolução industrial, o homem sentiu-se divino de novo. Mas houve quem encontrasse nestes avanços tecnológicos uma nova “caixa de pandora”. Samuel Butler, em 1872, publicou “Erewhon – or, Over the Range”, um livro de ficção em que descreve um mundo onde as máquinas surgidas durante a revolução industrial desenvolvem consciência por um processo de seleção natural. Ideia curiosa por conjugar os temores resultantes da revolução industrial com teorias científicas da época – a seleção natural de Charles Darwin.
Os avanços na tecnologia e na ciência trouxeram sempre medos e visões de um futuro que, umas vezes utópico, outras distópico, foi fonte de inspiração para escritores. Um futuro utópico é “sonhado” por Júlio Verne e H. G. Wells, em cujas obras imaginaram mundos onde as máquinas iriam permitir ao homem feitos gloriosos. Outros como Aldous Huxley, no seu “Admirável mundo novo” imagina um mundo menos benévolo e claramente mais distópico. Estes e muitos outros textos que podem ser citados. Todos eles traduzem os avanços tecnológicos da época e a forma como os escritores viam as suas fantasias e temores.
Era inevitável que as máquinas com computação e a inteligência artificial levantassem os mesmos receios. O homem evoluiu mas não deixou para trás o seu cérebro reptiliano.
Quando as máquinas começaram a apresentar alguma forma de “inteligência” o homem assustou-se e viu nesses avanços uma nova “caixa de pandora”. Uma caixa que se aberta libertaria males não imaginados, males que poderiam levar à destruição da espécie humana e de toda a vida na terra.
Este apocalipse tem tido os seus arautos. Estes são habitualmente personagens com grande força mediática, mas, infelizmente, com o seu peso e “autoridade” têm contribuído mais para a confusão generalizada que para o esclarecimento e uma reflexão adequada.
Raymond Kurzweil, cientista da Google e inventor de renome, sugeriu que, dado o ritmo a que a I.A. progredia, rapidamente atingiria um ponto, que previu para 2045, onde, pela progressão logarítmica, os humanos deixariam de ter a capacidade de a acompanhar e entender. Outros como Nick Bostrom veem nos avanços tecnológicos e rápida progressão das capacidades da I.A. um risco para a humanidade e civilização, um mundo apocalítico pós humano. Estes arautos da desgraça não estão isolados, e outros rapidamente se assumiram como profetas. Celebridades como Elon Musk e Stephen Hawking foram, pela pregnância da sua voz na sociedade, dos que mais contribuíram para os editais de alerta contra os riscos apocalíticos da I.A.
Outros, como Neil deGrasse Tyson, num misto de ironia e de quem duvida com um “talvez, quem sabe!”, admitem a possibilidade de a realidade que conhecemos ser virtual. Algo muito semelhante ao imaginado pelas irmãs Lilly e Lana Wachowski na trilogia de Matrix.
A discussão que deveria estar centrada nas implicações que a I.A. tem na sociedade e na forma como se organiza e estrutura foi substituída pelo “pânico” em que o nosso cérebro reptiliano nos encerrou. E se as máquinas adquirirem consciência? Vai a inteligência artificial desenvolver consciência?
Esta pergunta estimulada pelo nosso cérebro reptiliano foi largamente amplificada por produções mais ou menos espetaculares da ficção científica.
Inúmeros filmes têm transportado para a tela os nossos medos, e sonhado com um mundo distópico onde as máquinas dotadas de I.A. desenvolvem consciência, e, ao adquirirem o seu “cérebro reptiliano virtual”, veem no humano uma ameaça a eliminar.
A mais paradigmática das películas a abordar esta questão foi sem dúvida o “2001: Odisseia no espaço”, de Stanley Kubrick, baseado num texto escrito por Stanley Kubrick e Arthur C. Clarke. Neste filme de 1968 a I.A. corporizada no “computador Hal”, para proteger a sua integridade, toma decisões que acabam por ser fatais para os humanos. No final, quando o comandante Bowman inicia a desativação do computador este apresenta emoções como um qualquer humano no corredor da morte.
Outros filmes como “Blade Runner”, realizado em 1982 por Ridley Scott, e baseado no romance de Philip K Dick; ou “Artificial Intelligence”, realizado em 2001 por Steven Spielberg, baseado numa novela de Brian Aldiss; ou ainda “I, Robot” realizado em 2004 por Alex Proyas e baseado num romance de Isaac Azimov, são ilustrações cinematográficas desses receios.
Noutras histórias as “máquinas sencientes” levaram-nos para patamares distintos. No filme da série Star Trek “O Caminho das Estrelas”, realizado em 1979 por Robert Wise com argumento de Harold Livingston, baseado num original de Alan Dean Foster, a sonda espacial V’Ger regressa à Terra para se encontrar com o seu criador e lhe transmitir todo o conhecimento acumulado na sua viagem pelo universo. Noutra película, no filme “Her – Uma história de amor”, realizado em 2013 por Spike Jonze, são exploradas as ligações empáticas e de amor entre o humano e uma representação virtual dos mesmos.
Todas estas histórias têm em comum a possibilidade de as máquinas adquirirem uma consciência semelhante à humana. Mas conforme se explicou na primeira parte do texto, na ausência de um organismo objeto da sua própria consciência, na ausência de estruturas e reflexos neuro-químicos na génese dos sentimentos e emoções, as máquinas ficam limitadas à parcela de “consciência” que lhes é conferida pela inteligência lógico-matemática. Tudo o mais que nos atemoriza e nos causa medo mais não é do que a atividade da nossa própria consciência e do nosso cérebro reptiliano que vê na I.A. um atrevimento e uma provocação aos deuses.
Mas não julgue, nem por breves instantes, que desvalorizo os riscos da I.A., uma máquina sem “amígdala”, mas com todas as qualidades e características para revolucionar, para o bem ou para o mal, o nosso modo de vida.