A quase-confirmação de que Henrique Gouveia e Melo vai mesmo ser candidato a Presidente da República deixou meio mundo nervoso e outro meio mundo entusiasmadíssimo. Não deixa de ser sintomático que alguém que não enche telejornais há praticamente três anos, que alguém de quem não se conhece uma ideia de e para o país, de quem nem se sabe se é de esquerda, de direita ou de centro, esteja, neste momento, tão bem lançado para ganhar as próximas presidenciais.
Haverá muitas razões para isso. Argumentos que, por estes dias, lá vão sendo encadeados para justificar o claro favoritismo com que parte para esta corrida — se decidir de facto entrar na corrida. Que a culpa é de Marcelo, que deixou o país a ansiar por alguma normalidade institucional. Que a culpa é da esquerda, que deixou um país numa bagunça tal que é preciso chamar um militar. Que a culpa é da direita, a nacional, a europeia, a atlântica, a galática, que se alimenta de e alimenta estas figuras por puro revanchismo histórico.
E, sem grande surpresa, que a culpa é dos portugueses, que, coitados, não têm inteligência suficiente para perceber que uma farda não é necessariamente sinónimo de competência política, que sofrem de um intrínseco e mal disfarçado saudosismo pelo Estado Novo ou que, em alternativa, estão obcecados com a ideia de ter um homem forte em Belém, que transmita autoridade militar (ou mesmo um certo cheirinho a autoritarismo) e que não vá na conversa dos afetos (“Colinho dá a mãe em casa”, chegou a dizer o almirante). A velha desculpa esfarrapada de sempre: a culpa de escolhas pouco óbvias, passadas, presentes e futuras, é dos eleitores, ignorantes, impreparados e insensíveis na hora do voto.
Há dias, em entrevista ao Observador, Sérgio Sousa Pinto, insuspeito de ser um homem de direita, um saudosista do regime da Outra Senhora ou de ser exatamente um deslumbrado pela farda branca do almirante, dizia o seguinte: “Se tivermos um candidato militar à Presidência da República é porque os civis não estiveram à altura. Mostra um declínio dos partidos, esse tal cansaço do regime, essa dificuldade de emergirem personalidades da vida política nacional, como acontecia no passado, cujos combates, cuja frontalidade, cuja relação de confiança que construíram com o país os colocava nessa pole position presidencial”.
Sousa Pinto está carregadinho de razão. Gouveia e Melo não tem passado político, não tem provas dadas nesse campo, ninguém sabe o que defende ou sequer como vê o cargo de Presidente da República. E, mesmo assim, parece ter mais hipóteses de ganhar do que muitos dos putativos candidatos que, com maior ou menor razoabilidade, vão sendo avançados e que levam anos de exposição pública e política. Dá que pensar.
Se PS e PSD (ou esquerda e direita) têm medo de uma eventual vitória de Gouveia e Melo nas próximas eleições presidenciais, têm bom remédio: apresentem melhores candidatos do que Henrique Gouveia e Melo. Os melhores que tiverem à disposição, pelo menos. Se para isso for preciso aplacar egos desmedidos, matar sonhos messiânicos, travar aventuras divisivas, trabalhar diplomaticamente nos bastidores, convencer quem tem de ser convencido, que assim seja. É isso que significa liderar e fazer escolhas difíceis.
Quanto a Gouveia e Melo, a jornada do almirante começará quando for confirmado formalmente que não será reconduzido como Chefe de Estado-Maior da Armada. A partir daí, será escrutinado, algo que nunca aconteceu verdadeiramente. Terá de dizer o que pensa do país, coisa que nunca fez de forma estruturada. Terá de explicar o que pretende fazer com o voto dos eleitores, o que, parecendo que não, não é uma coisa de somenos. E, já agora, terá de esclarecer com que aliados contará nessa corrida a Belém — André Ventura já se colou ao almirante; Gouveia e Melo terá de decidir se quer essa companhia ou não.
Não se saber o que pensa é simultaneamente uma vantagem e uma desvantagem para Henrique Gouveia e Melo: para já, os rivais não têm grandes argumentos para o criticar porque é uma folha em branco; no futuro, terá finalmente de se definir, dizer ao que vem e o que defende — como já se viu com outros bem-intencionados e inexperientes candidatos fora do universo clássico da política, o potencial para o disparate é grande.
Numa ideia: assim que Gouveia e Melo despir a farda de militar e abrir a boca como candidato presidencial vai começar a cometer erros, a criar inimizades políticas, a desiludir aliados e a perder votos — ninguém, nem mesmo o mitológico almirante, consegue ser consensual e agradar a todos. Mas será suficiente para perder uma corrida em que parece ser confortavelmente favorito? Montenegro e Pedro Nuno podem fazer figas, confiar no destino e no possível desacerto do almirante. Mas, como projeto de vitória, parece curto. Depois não digam que a culpa foi dos eleitores.